A Doutrina dos 8 Vícios (3) - EVÁGRIO PÔNTICO
VI. O DEMÔNIO DA ACÍDIA
O demônio da acídia, também chamado demônio do meio-dia, é o mais trabalhoso de todos. Ele ataca o monge pela quarta hora e o sitia até a oitava hora. Primeiro faz com que o sol se mova muito devagar, ou que não se mova de maneira nenhuma, e que o dia pareça ter 50 horas. Depois impele o monge a sempre olhar para a janela e a correr para fora da cela, para ver se o sol ainda está longe da nona hora, e olhar ao redor para ver se não vem chegando algum irmão. Além disso injeta uma aversão contra o lugar em que se vive e contra a própria forma de vida, contra o trabalho manual, e inocula a ideia de que a caridade desapareceu entre os irmãos e que não existe mais ninguém que possa trazer algum consolo. E se por estes dias alguém ocasionou-lhe uma ofensa, o demônio utiliza também isto para aumentar a aversão. Faz com que o monge anseie por outros lugares e onde possa encontrar mais facilmente o que precisa e onde possa encontrar uma vida menos trabalhosa e mais útil. E acrescenta que agradar ao Senhor não depende do lugar. Deus, diz ele, pode ser adorado em toda parte. A tudo isto acrescenta ainda a lembrança dos parentes e de sua vida passada, pintando-lhe como a vida é longa, e mantendo-lhe diante dos olhos as dificuldades da ascese. Mobiliza, como se diz, todas as suas baterias para que o monge deixe sua cela e se desvie de sua rota. Atrás deste demônio não segue diretamente nenhum outro: um estado de paz e de indizível alegria toma posse da alma após o combate (P12).
A acídia é o abatimento do corpo e do espírito, a moleza e frouxidão. Para os antigos monges, o demônio da acídia é o mais perigoso de todos. Ele vem acompanhado por quase todas as tentações e pensamentos. Enquanto os outros demônios não atingem senão uma parte da alma, o demônio do meio-dia ocupa a alma inteira (cf. P36). Ele sufoca a razão e rouba da alma todas as suas forças. A pessoa não tem mais gosto por coisa nenhuma.
Cassiano chama a acídia também de tédio ou temor do coração, opressão interior. A falta de vontade impele a pessoa ou a dormir ou a fugir da cela, a procurar agitação. Evágrio descreve com bastante humor o comportamento de uma pessoa acometida de acídia: O olho do preguiçoso se volta muitas vezes para a janela e seu espírito imagina as pessoas que vêm visitá-lo. Range a porta, e logo ele se levanta, ouve uma voz e olha curioso pela janela, de onde não se afasta, ouve uma voz e olha embasbacado para fora. Na leitura o preguiçoso boceja muitas vezes e sente-se poderosamente atraído pelo sono; desvia os olhos do livro e os esfrega, voltando-os para a parede. Depois olha de novo para o livro, lê algumas palavras, esforçando-se inutilmente por perceber o sentido das palavras. Conta as páginas do livro e examina a escrita. Censura a escrita e o feitio, e por fim fecha o livro e o coloca sob a cabeça para dormir. E dorme um sono leve, porque depois a fome desperta a sua alma, e ele a sacia (Geister: PG 79, 1160).
Gregório Magno menciona as consequências da acídia: desespero, desânimo, mau humor, azedume, indiferença, sonolência, tédio, fuga de si próprio, aborrecimento, curiosidade, dispersão no falar, agitação do espírito e do corpo, inconstância, pressa e vacilação. A acídia é a grande tentação dos eremitas. É uma questão de vida ou morte. Tudo é questionado, falta todo impulso interior, o coração parece gravemente enfermo, a alma confusa.
A alma adoece e sofre, mergulhada no amargor da acídia. Em tal excesso de sofrimento abandonam-na todas as forças. Sua capacidade de resistência fica prestes a abandonar o campo a um demônio tão poderoso. Ela perdeu a cabeça, comportando-se como criancinha que chora e se lamuria sem parar, como se não houvesse mais qualquer esperaança nem consolo (Ant VI, 38).
Todo o organismo da alma fica abalado. O homem sente-se nos limites de sua condição humana. Recai num comportamento infantil, busca quem dele se compadeça.
André Louf considera a acídia a crise em que cai necessariamente aquele que elimina todas as distrações. A acídia é “uma espécie de vertigem diante do vácuo entre a alma e Deus, impotência de abrangê-lo ou, simplesmente, de suportá-lo”. Na acídia o monge chega às raias da loucura. “A ruína espiritual e a decadência psíquica o espreitam”. Mas aquele que atravessa esta crise, aquele que se mantém firme, ou que simplesmente a suporta, este experimenta uma profunda paz e alegria. “Um homem novo, mais harmoniosamente integrado, é o que sai desta provação”.
A acídia corresponde ao estado que M.L. v. Franz chama de “perda da alma”. “A perda da alma aparece como uma repentina falta de disposição, como um cansaço. A pessoa deixa de ter alegria na vida, sente-se vazia e inerte, para ela nada mais parece ter sentido”. Franz explica este estado pelo fato de uma grande parte da energia psíquica haver fluído para o inconsciente, e, por conseguinte, não se encontrar mais à disposição do eu. A energia foi sugada por um complexo inconsciente. Enquanto ira e tristeza são reações à não-satisfação dos três instintos básicos, na acídia os instintos são reprimidos. Para Evágrio o perigo da acídia consiste precisamente em que ela se esconde àquele a quem acomete. Sem que o homem perceba, os instintos desordenados assumem as rédeas, por vezes até mascarados de virtudes. A esta observação de Evágrio corresponde o que Franz constata em muitas depressões endógenas, a saber, que “no fundo de toda paralisação e estagnação da personalidade existe como que um desejo qualquer particularmente intenso (poder, amor, impulso de expansão, agressões, etc.), mas que o homem depressivo, por variados motivos, não ousa trazer à tona”. Na acídia os três instintos básicos atacam o homem a partir do inconsciente, como impulsos reprimidos, e que por isso já não podem ser claramente reconhecidos. E é precisamente o fato de não se ver o adversário contra quem se combate que torna a acídia tão perigosa. Os monges aconselham a perseverança, porque então há de surgir uma nova vida, há de chegar à paz e à alegria. Franz expressa isto, do ponto de vista psicológico, com estas palavras: “Quando por bastante tempo se reside neste estado, mais tarde quase sempre o complexo que havia sido ativado pela energia retirada retorna à esfera consciente: surge um intenso interesse pela vida, mas que agora quase sempre impele em uma direção diferente”.
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