A ORAÇÃO DO CORAÇÃO - parte 6 e final
6. A Oração Ininterrupta
Em alguns grandes espirituais (pouco numerosos, porém não excepcionais), a "oração de Jesus" faz-se "espontânea", "ininterrupta". A invocação se identifica com as batidas do coração. É o ritmo mesmo da vida, a respiração, a pulsação do coração, o que ora neles, ou melhor, o que, na perspectiva do original e do último, se reconhece oração. Isto, repito, e sobretudo atualmente, é necessário descobri-lo em um humilde abandono, em uma inteira confiança, por meio da graça.
"Quando o Espírito estabelece sua morada em alguém, este não pode deixar de orar, pois o Espírito não cessa de orar nele. Mesmo que durma ou que vele, a oração não se separa de sua alma. Enquanto bebe, come, está deitado ou se dedica ao trabalho, o perfume da oração brota de sua alma. Dali por diante, não só em momentos determinados, mas em todo o tempo, os movimentos da inteligência purificada são vozes mudas que cantam, no segredo, uma salmodia ao Invisível" (São Isaac, o Sírio). E o Peregrino russo nos confia: "Habituei-me tanto à oração do coração que a praticava sem cessar e, finalmente, senti que ela se fazia por si mesma, sem nenhuma atividade de minha parte; ela brotava em meu espírito e em meu coração, não somente em estado de vigília mas durante o sono e não se interrompia um segundo."
De fato, os progressos para a oração ininterrupta se inscrevem claramente em nossa relação com o sono. O sono profundo é uma espécie de estado místico, porém inconsciente. É por isso que é necessário dormir, colocando-se nas mãos de Deus com confiança.
A primeira etapa consiste em evitar toda a avidez de sonho e em praticar, de uma maneira ou outra (o ofício da meia-noite dos monges) uma vigília real porém breve interrompida pelo ofício em seu alcance simbólico.
A segunda etapa consiste em fazer penetrar a invocação no sono dizendo a "oração de Jesus" no momento do adormecimento. "Oração de uma só palavra, tu deves estar presente tanto ao dormirmos como em nosso despertar". Simultaneamente, é importante tomar nota dos sonhos, não para deter-se neles, senão para comunicá-los ao padre espiritual.
Assim, pouco a pouco, se protege o sono de fantasmas diabólicos que atravessam o subconsciente. Na terceira etapa, o sono, abreviado, porém todavia durável, se faz poroso e supra-consciente. "Eu durmo, trata-se de uma necessidade da natureza. Porém meu coração vela por amor excessivo." O homem se comunica com Deus por meio das visões do sonho, que não o liberam do imaginário individual ou coletivo, mas do "imaginal", no sentido que dá a esta palavra Henri Corbin. A Bíblia está cheia de sonhos que os Setenta denominam de "êxtase". Nos antigos países ortodoxos, tais sonhos que compartilham um elemento de revelação e de profecia, são relativamente correntes. O Patriarca Anthenágoras dizia que havia tomado todas as suas grandes decisões depois de tais sonhos. Assim, antes de sua proposição de encontrar-se com Paulo VI, em Jerusalém, ele havia visto um cálice sobre uma montanha: ele e o Papa escalavam a montanha por lados opostos.
Na última etapa, a da oração ininterrupta, o espiritual não dorme quase nada: o estado místico inconsciente de sonho profundo se faz consciente nele. Não tem já necessidade de visões do "modus imaginalis": chegou a ser visionário do real. É por isto que recebe o carisma de simpatia e de discernimento dos espíritos, podendo receber visitantes e fazer-se todo para todos durante dez ou doze horas contínuas, como o faz atualmente em Londres, o Metropolita Antônio.
Ao ato de oração sucede um estado de oração. E o estado de oração é a verdadeira natureza do homem, é a verdadeira natureza dos seres e das coisas. O mundo é oração, celebração, regozijo, como o expressam admiravelmente os salmos e o livro de Jó.
Esta oração muda, porém, necessita da boca do homem pra ressoar. É o que alguns padres gregos chamam "a contemplação da natureza"; o homem recolhe os "logoi" das coisas, suas essências espirituais, não para apropriar-se delas, mas para entregá-las a Deus como uma oferenda por parte da Criação. Ele vê as coisas estruturadas pelo Verbo, animadas pelo Espírito de vida e de beleza, tender para a Origem paternal, que as acolhe em sua diferença: "Pois, a união, deixando de lado a separação, não destruiu a diferença", diz Maximo, o Confessor.
A tensão para a Parusia resume aqui o paraíso primordial. O santo vive na familiaridade com as bestas selvagens. Elas sentem emanando dele um perfume igual ao de Adão antes da queda, disse São Isaac, o Sírio. Ao redor dele, o temor e a violência não existem. Um eremita de Patmos, morto há alguns anos, dava de beber às víboras pequenos copos de leite e impedia que os meninos de seu país as matassem: "São criaturas de Deus". São Serafim de Sarov se deixava devorar pelos mosquitos, dizendo somente com o Salmo a um amigo que queria caçá-los: "Que todo o sopro louve o Senhor".
Próximo aos animais - dos que toma a sabedoria, diz São Máximo -, o espiritual está também próximo das crianças pequenas que reconhecem nele um dos seus. "Sua carne é como a nossa", disse uma pequena referindo-se a São Serafim de Sarov.
"Tudo o que me rodeava se me aparecia sob um aspecto de beleza", escreveu o Peregrino russo. "Tudo orava, tudo cantava a glória de Deus. Eu compreendia assim o que a Filocalia chama a linguagem da Criação. Via como é possível conversar com as criaturas de Deus".
O homem chega a ser então o sacerdote do mundo. "A alma se refugia como numa Igreja ou num asilo de paz, na contemplação espiritual do Universo". O homem entra ali com o Verbo, e com ele, e sob sua condução, "oferece o Universo a Deus, em sua inteligência, como sobre um altar". Esta atitude pode aplicar-se à investigação cientifica. O investigador que pratica a "oração de Jesus", "busca um princípio de explicação que não dissolve o mistério das coisas, que respeita e revela a existência e o ser em lugar de desintegrá-los". Sua tarefa não é desintegração senão a reintegração espiritual.
A Oração de Jesus provoca no coração uma caridade sem limites: "Que é o coração caritativo?" Pergunta Isaac, o Sírio. Eis aqui sua resposta: "É um coração que arde de amor pela Criação inteira, pelos homens, os pássaros, os animais, os demônios, por todas as criaturas... É por isto que um homem semelhante não cessa de orar... inclusive pelos inimigos da verdade e por aqueles que lhe fazem mal. Ora inclusive pelas serpentes, movido pela piedade infinita que se desperta no coração daqueles que se unem a Deus". E também: "Que é o conhecimento?" - O sentido da vida imortal - "Que é a vida imortal?" - Sentir tudo em Deus. Pois o amor vem do re-encontro. O conhecimento relacionado com Deus unifica todos os desejos. E para o coração que o recebe, é integralmente doçura transbordante sobre a terra. Pois não há nada semelhante à doçura do conhecimento de Deus."
Talvez o hino que mais se impõe a esta unificação diversa do mundo na luz tabórica, se encontre ao final da Filocalia grega, no Tratado Sobre a União Divina e a Vida Contemplativa, de Calixtos Catafigiota. Citemos pelo menos algumas linhas: ""Não há uma só coisa no Universo que não testemunhe o esplendor (da glória) e que não leve como um perfume desse Uno Criador. Posto que o Uno é chamado em toda coisa, que toda coisa tende para o Uno e que o Uno mais alto que o mundo se revela à inteligência através de todos os seres, é necessário que a inteligência seja conduzida, guiada e levada para o Uno mais alto que o mundo. Ela é forçada a isto pela persuasão de tantos seres... Da busca vem a visão e da visão vem a vida, para que a inteligência exulte, se ilumine e se regozije, como disse David: 'Em TI está a morada de todos aqueles que se regozijam' e 'Em tua luz, veremos a luz'. Se não... 'Como haveria ele semeado em todos os seres aquilo que está n'Ele e por meio do qual, como através de janelas, revelando-se à inteligência, Ele a chama para ele, cheio de luz?"'
Tudo culmina no amor verdadeiro do próximo. Penso neste belo texto de um russo "Louco em Cristo", do começo de nosso século: "Sem a oração, todas as virtudes são como árvores sem terra; a oração é a terra que permite crescer todas as virtudes". O discípulo de Cristo deve viver unicamente por Cristo. Quando ele ama a Cristo até este ponto, amará forçosamente também a todas as criaturas de Deus.
Os homens crêem que é necessário primeiro amar aos homens e logo a amar a Deus. Eu também acho isto, porém não serve de nada. Quando, pelo contrário, comecei a amar a Deus, nesse amor de Deus encontrei meu próximo. E nesse amor de Deus, meus inimigos também se tornaram meus amigos, criaturas divinas.
Evágrio escrevia:
"Feliz o monge que considera a todo homem como deus depois de Deus. Feliz o monge que vê como seus próprios, o progresso e a salvação de todos. Esse é o monge que, ainda afastado de todos, está unido a todos."
E Santo Isaac, o Sìrio:
"Deixa-te perseguir, porém, tu não persigas. Deixa-te ofender, porém, tu não ofendas. Deixa-te caluniar, porém, tu não calunies. Alegra-te com aqueles que se alegram, chora com aqueles que choram; esse é o sinal da pureza... Sê amigo de todos, porém, em teu espírito, permanece só". Só com o Único, que é o Amor e nos dá a força de amar. E, Santo Isaac, precisa: "Eis aqui meu irmão, um mandamento que te dou: que a misericórdia prevaleça sempre em tua balança, até o momento em que sentirás em ti a misericórdia mesma que Deus experimenta para com o mundo."
"Não intentes distinguir aquele que é digno daquele que não o é; que todos os homens sejam iguais a teus olhos, para amá-los e servi-los. Assim, poderás conduzir ao bem os indignos... O Senhor compartilhou a mesa dos publicanos e das mulheres de má vida, sem afastar dele os indignos. Assim, tu concederás os mesmos benefícios, as mesmas honras, ao infiel, ao assassino; ele também é um irmão para ti, posto que participa na única natureza humana."
"Quando reconhece o homem que seu coração alcançou a pureza? Quando considera a todos os homens como bons, sem que nenhum lhe pareça impuro ou maculado. Então, em verdade, ele é puro de coração."
A Madre Maria (Skobtzoff), uma monja ortodoxa que vivia na França entre as duas guerras, intentou precisar a 'ascese' do amor ativo. Esta antiga revolucionária, de vida violenta e apaixonada, havia se convertido em um ser de luz. Lia a Filocalia na perspectiva dos filósofos religiosos russos, em primeiro lugar Nicolás Berdiaev: dedicava-se aos excluídos, aos mais desprovidos, percorrendo a França em bondes, escrevia poemas ou pintava ícones. Durante a guerra salvou muitas vidas de judeus. Enviada à Ravensbruck, resplandecendo de maneira inesquecível entre suas companheiras, morreu tomando lugar de outra na câmara de gás. Ela gostava de recordar a história de um monge do antigo Egito que, para alimentar a um faminto, não havia duvidado de vender seu evangelho, seu único bem.
Em seu estudo sobre o Segundo Mandamento do Evangelho, esboça as grandes linhas de uma ascese de encontro e de amor. É necessário evitar - diz - projetar o próprio psiquismo sobre o demais. É necessário compreender o outro em um extremo despojamento de si, até descobrir nele a imagem de Deus. Então se descobre de que modo essa imagem pode estar apagada, deformada pelos poderes do mal. Vê-se o coração do homem como o lugar donde o bem e o mal, Deus e o diabo, travam uma luta incessante. E se deve intervir nesse combate, não pela força exterior, que não poderia chegar mais que a este "pesadelo do mal- bem", do bem imposto, denunciado por Berdiaev, senão pela oração:" pode-se intervir, se se coloca toda confiança em Deus, se se despoja de todo o desejo interessado, se, tal como David, se joga fora suas armas e entra no combate sem outra arma que não seja o Nome do Senhor. Então o Nome, chegando a ser Presença, inspira-nos as palavras, o silêncio, os gestos indispensáveis.
A todos os que alcançam este "estado de oração", tudo lhes rende o "cêntuplo". Conhecem essa transfiguração do eros que buscaram tão desesperadamente durante os últimos anos, os defensores do "fppreud-marxismo". Percebem com uma extraordinária "plenitude" o mistério dos seres e das coisas, a face oculta da terra. Recebem carismas de paternidade espiritual, de cura e de profecia. Esta paternidade, como aquela de Deus que ela manifesta, sobre-passa, integrando-a, a dualidade sexual: São Serafim, renovando uma antiga indicação monástica, dizia ao Superior de Sarov: "Sois uma mãe para teus monges."
O Espírito, unido ao coração, acede a uma forma renovada de intelecção, a um pensamento inseparável da paz e do amor sustentado pela oração (pois, doravante, esta não se interrompe durante o exercício do pensamento). A prática da invocação do Nome de Jesus não tem nada, como se crê habitualmente, de um anti-intelectualismo: ela crucifica e ressuscita a inteligência. "O coração liberto de imaginações termina por produzir em si mesmo santos e misteriosos pensamentos, como se vê sobre um mar calmo saltar os peixes e brincar os golfinhos."
As vezes se revelam aos "espirituais" os mistérios da origem e do fim da humanidade e do Universo, participam na passagem da História para o Reino, a iluminação da Nova Jerusalém. Tomam lugar na comunhão dos "pecadores conscientes", aqueles que oram para que todos sejam salvos.
A "oração de Jesus", pronunciada: "tem piedade de nós", nos recorda que ninguém se salva sozinho, mas somente na medida em que se chega a ser uma pessoa em comunhão, que não já está separada de nada. Aquele que invoca o Nome chega a ser o amigo do Esposo, que ora para que todos estejam unidos ao Esposo: "É necessário que ele cresça e que eu diminua". Não fala de inferno senão para si mesmo, por uma infinita humildade: é a história do cordoeiro de Alexandria, dando uma lição a Santo Antonio ao revelar-lhe que orava para que todos fossem salvos, sendo ele o único que merecia ser castigado. É Simeão, o Novo Teólogo, dizendo que é necessário olhar a todos seus companheiros como santos e ter-se a si mesmo como o único pecador, "dizendo-se que, no dia do Juízo, todos serão salvos, só eu serei rechaçado". Então o Senhor disse ao starets Silvano: "Mantém teu espírito em inferno e não desespere".
A esperança aumenta por meio da oração: esperança do Último Dia, sem ocaso, quando o sopro do Espírito dissipará as cinzas e manifestará ao mundo, como uma "sarça ardente", em Cristo. A dissolução da ilusão e da morte não se produzirão sem provas maiores. "Então, todo o que invocar o Nome do Senhor, será salvo".
Por favor, entre em contato para estudar, orar e praticar conosco, e também participar de nossos grupos de estudo, envie uma mensagem para o WhatsApp 79991316067.
https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/a_oracao_do_coracao_olivier_clement.html#4
Comentários
Postar um comentário