Comunhão dos Santos: A Igreja Toma Consciência da Presença de Deus


A Igreja descobre-se no mundo

E certo que a Eucaristia - tornada de consciência da presença real do Inefável junto de cada homem e nele - determina a Igreja no seu movimento de consciência de si em torno do sacramento, logo na sua unidade, santidade e apostolocidade que implicam a organização interna em redor dos bispos secundados pelos padres nos quais Deus garante de maneira visível a continuidade da sua presença na Eucaristia; daí decorre, sem dúvida, uma lucidez fraterna a respeito dos sistemas filosóficos e até religiosos, cristãos, que ficariam para aquém da apreensão na sua plenitude do divino encarnado, lucidez igualmente a respeito da Ortodoxia precisamente onde os seus membros não manifestam o máximo de humanidade de que ela constitui a tomada de consciência. Mas, se a Eucaristia determina este movimento de concentração em torno do essencial, ela é igualmente, ao mesmo tempo, o revelador de um movimento de expansão centrífuga, de humanização muito para além das fronteiras visíveis da Igreja. Esta é una, santa e apostólica, mas é também católica, isto é, "integral, universal" (do grego Kath 'holou = segundo a totalidade). Nada do que é humano é estranho ao Inefável, que dá a toda a realidade a sua verdadeira perspectiva particularmente à sociedade humana e às relações que a definem. Nada é pois estranho à Igreja, comunidade daqueles que aceitaram para a sua vida e para a do mundo, a invasão de Deus. Porque, sendo "Deus" sempre dado de novo, ela pode "devolver à humanidade a sua intimidade perdida com o Pai" (Jean Meyendorff, op. cit. p. 9); a Igreja não é um fim em si, mas não se realiza senão na medida em que o movimento divino de humanização de que os seus membros tomam consciência real irradia - ver-se-á concretamente - em todos os aspectos da vida humana. "A eclesiologia (= a doutrina da Igreja) nota o padre Schmemann, se não se inserir na sua verdadeira perspectiva cósmica ["para a vida do mundo"], se não se constituir em forma cristã da "cosmologia," não passa de uma eclesiolatria que faz da Igreja uma "coisa em si" e não o que ela é - uma nova relação entre Deus, o homem e o mundo" (Alexander Schmemann, op. cit. p. 47-48). A comunhão dos membros da Igreja entre si, para ser real, ultrapassa e inclui todo o homem, sem distinção de raça, de crença, de filiação política, social e nacional. "Na comunidade [da Igreja] o mundo inteiro está como que transfigurado num antegozo da realização final do mundo histórico. Se a Igreja não for vista simplesmente no seu aspecto institucional de sociedade particular, mas como a divina presença do Espírito, ela é o grande microcosmo, o centro e o eixo de toda a história. A Igreja não pode ser separada do mundo; ela é o seu coração. Está implantada em pleno centro da realidade histórica de que é ao mesmo tempo a origem e o fim. É o sentido qualificativo de catolicidade (sobornost em russo) que produz a realidade geográfica da Igreja."

Tal é a doutrina de Cristo: O amor é o movimento divino, logo humano que, significado pela Eucaristia, símbolo do amor de Deus em Cristo, confere ao mesmo tempo à Igreja a sua coesão e assegura-lhe a irradiação social. O homem pode amar porque "Deus, por um acréscimo de amor a nosso respeito, sendo transcendente a todas as coisas, incompreensível e indizível, consente em tornar-se participável ao nosso espírito e indizivelmente visível no poder superessencial e inseparável" (N. A. Nissiotis, op. cit. p. 60). Gregório Palamas, teólogo bizantino do século XIV, indica assim que o Inefável é a fonte, o fim e a profundidade do amor humano, do respeito e da solidariedade que os homens podem manifestar uns para com os outros. Amando, o homem realiza a sua própria natureza, toca e participa no Inefável que constitui a profundidade da sua própria vida. "O amor, observa Diádoco de Foticeia, une a alma às próprias virtudes de Deus, buscando pelo sentido interior Aquele que é invisível" (Centurie 1, citado pelo autor, op. cit. p. 191). Amor do próximo e amor de Deus sobrepõem-se. "O amor de Deus e o amor dos homens são os dois aspectos de um mesmo amor total" (Máximo o Confessor: Épitre 3, PG 91, col. 409 B). Uma vez que Deus se fez homem "o salvacionismo individual que não se ocupa senão da salvação da sua alma manifesta uma perigosa deformação. Ninguém pode jamais apresentar-se só diante de Deus... O centro [da vida humana] está em Deus e todos os homens se encontram na circunferência. Dirigindo-se para Deus, cada um segue um raio do centro, e quanto mais próximo se está do centro mais próximos estão os raios uns dos outros. Assim, a distância mais curta entre Deus e o homem passa pelo próximo" (Paul Evdokimov, op. cit. p. 148). Ou ainda, como diz o padre João de Cronstadt: "Se amais o vosso próximo, os céus vos amam; se estais em comunhão de espírito com os vossos semelhantes, estais unidos a Deus; se perdoais ao vosso próximo, estais seguros do perdão de Deus..." (Citado por G. P. Fedotov, op. cit., p. 415). Mas, sendo participação do que faz verdadeiramente o humano - Deus - o amor do próximo é "dado;" ele não é realmente possível senão na invasão primeira e incondicional do Inefável através da consciência e das motivações inconscientes do homem. Para a fé ortodoxa, o amor do próximo que vai até ao perdão e ao amor dos "inimigos" - aqueles que nos querem mal ou que nós julgamos que querem - é o fruto da presença de Deus no homem, da sua humilde disponibilidade a respeito da sua verdadeira humanidade. "Sem cessar, nota o padre Siluan, imploro a Deus que me ajude a amar os irmãos deles, porque nossos irmãos, é a nossa vida... Tu dirás: "Mas os inimigos perseguem a nossa Igreja! Como poderei eu amá-los?" Escuta: a tua alma não reconheceu a Deus, não compreendeu quanto Ele nos ama, com que intensidade Ele aguarda que todos os homens se voltem para Ele e descubram assim a sua vida verdadeira. Deus é o amor; o seu Espírito não é outra coisa senão a capacidade de amar os seus inimigos, de orar por eles, a fim de que também eles descubram a vida" (Staretz Siluan: op. cit., referido e publicado pelo Arquimandrita Sophronius. Dusseldorf, 1959, p. 280, 284, 289).

Nicolau Arseniev cita um belo exemplo deste amor por outrem, brotando do mais fundo da alma, um amor simples, direto, sem pieguice mas muito humano - e humanizante:

Eis uma história que um amigo me contou - um jovem Polaco forçado pelos Alemães a servir de intérprete na frente russa. (Conseguiu depois evadir-se e tomar parte na resistência). Durante o primeiro Inverno da campanha russa. com um frio terrível (35° negativos) encontrava-se com um jovem oficial alemão num automóvel em plena estrada. Estavam os dois completamente transidos de frio. Decidiram parar no primeiro casinhoto da primeira aldeia que encontrassem para se aquecerem um pouco. Ora a casa onde os dois jovens entraram por acaso era uma das mais pobres da aldeia, sem uma acha de lenha sequer, e estava cheia de crianças. Na verdade a família que lá vivia tinha dado hospitalidade a duas outras famílias da aldeia vizinha, incendiada pelos alemães em retirada: as tropas alemãs tinham recebido a ordem draconiana de incendiarem sem contemplação todas as aldeias donde retiravam para não deixarem ao inimigo senão ruínas e um deserto devastado. Era quase uma sentença de morte para a pobre gente vítima desta medida feroz e que, com 35° negativos, ficava sem abrigo para as crianças. Uma destas famílias tinha podido salvar uma vaca: a outra um saco de farinha. Era tudo quanto lhes foi possível levar. Quando estes dois jovens entraram, uma rapariga da casa começou a desabafar à maneira russa, como o fazem as aldeãs, queixando-se num recitativo meio lírico: "Os tempos são duros e tudo vai tão mal e sofre-se e faz tanto frio," etc. Depois, voltando-se para os dois jovens (que tomava por alemães), começou a lamentá-los. "Isto também não é agradável para vocês, que estão aqui, num país estrangeiro, com este frio. Ah! tão jovens ainda e longe da família!" etc. Depois, sai de junto deles e volta passados alguns minutos com uma tigela de leite quente e dois nacos de pão, e dá-lhos. Quando tentam recusar, ela insiste - que lhes fará bem beberem alguma coisa quente e comerem um pouco. Pois bem! era mulher a quem os alemães tinham queimado a casa, deliberadamente, um dia antes, na aldeia vizinha. Os dois jovens estavam impressionados. Isto não tem nada a ver com a pregação do ódio entre as nações, as raças ou as classses. Era uma outra mensagem: as sementes da boa nova caíram profundamente no subconsciente destas almas. Era a aplicação à vida da mensagem do Evangelho por uma simples aldeã que nem disso se dava conta provavelmente (Nicolas Arseniev: La Piété russe. Neuchãtel, 1963, p. 90-91).

Não se trata de um vago sentimento, de um doce "calor de alma", mas de um amor muito concreto, de um ato de amor ao próximo vivido na colaboração, no perdão, no respeito e na entreajuda eficazes. É em primeiro lugar nos encontros diários com os outros que o dinamismo divino do amor se expande, que constitui o único estilo de vida realmente humano, que é a origem última não só das relações construtivas para cada um, entre os membros da sociedade e das sociedades entre si, mas também a condição indispensável a toda a espécie de criação técnica, científica e artística. O amor vivido no encontro com os outros, possível porque cada um se sabe a caminho para a realização da sua vocação de homem, portanto só possível na fé, faz de cada cristão, qualquer que seja a sua função na Igreja, um "padre," isto é, um "transmissor" de vida, de alegria, de humanidade. "Todo o leigo é padre da sua existência, oferece em sacrifício a totalidade da sua vida e do seu ser" (Paul Evdokimov, op. cit., p. 214). Os ritos da Igreja recordam-no aos crentes. O dom de si no amor é, já o vimos, vivido como o sinal de uma realidade universal, no casamento, sacramento do amor. Ele está já prefigurado no batismo - cujo rito de tonsura é acompanhado desta oração significativa: "Abençoa o Teu Servo que te veio oferecer como primícias [dom da sua vida] a tonsura dos cabelos da sua cabeça" (Cit, ibid. p. 217). O dom de si é sempre realizado de novo na Ceia, na oferenda do pão e do vinho, símbolos da vida humana.

Enquanto tal, o amor do próximo, para ser real, sendo a mão estendida fraternalmente, o serviço prestado, o respeito, a compreensão das motivações do outro, é ao mesmo tempo transmissão a outrem, muitas vezes silenciosa, do Inefável no qual, em última análise, qualquer gesto de amor se torna humano e humanizante. Para os ortodoxos, amor e fé são inseparáveis e, assim. são inseparáveis "entreajuda" e "testemunho-missão." Eis a razão pela qual a evangelização da Sibéria e do Alasca, realizada no século passado pela Igreja russa, estava inseparavelmente ligada a uma ação de entreajuda às populações visitadas (Para um esboço histórico do movimento missionário das Igrejas ortodoxas, ver Ernst BENZ: Geist und Leben der Ostkirche. Hamburgo, 1957, p. 89-I 15. 0 autor (protestante) demonstra como é pouco fundado o preconceito bastante corrente segundo o qual as Igrejas ortodoxas negligenciaram a evangelização). O amor cristão do próximo não pode, pois, limitar-se a uma ajuda exterior. Pode ir até à partilha recíproca da razão profunda de viver. Dai, esta "definição do laicado: por todo o seu ser, em toda a sua existência, tornar-se uma teologia viva, teofânica uma manifestação de Deus, lugar esplendoroso da presença, da parusia de Deus" (Paul Evdokimov, op. cit., p. 222). O amor culmina na manifestação através da vida concreta da razão de ser do homem - o Inefável tornado plenamente humano em Cristo - e, reciprocamente, quanto mais for eficaz, concreto, quotidiano, "horizontal," tanto mais será manifestação de "Deus," dimensão "vertical" do homem. "Não se trata, escreve Nicolau Cabasilas, teólogo bizantino do laicado, nem de se retirar para uma solidão, nem de tomar um alimento não habitual, nem de modificar as suas roupas, nem de comprometer a sua saúde, nem de empreender qualquer outro domingo; importa entregar-se sem cessar a estas meditações [da presença de Deus] permanecendo no interior de si mesmo e sem desligar do mundo os seus talentos.

O amor é, pois, por assim dizer, o "motor" do dinamismo social descoberto e vivido pela Igreja em primeiro lugar através da vida diária dos seus membros. Ora seria ineficaz e sem alcance num mundo não despojado da sua espessura "demoníaca," num mundo que permaneceria impenetrável e rígido perante a penetração do impulso e do amor construtivo dos homens. Numa palavra, para poder agir com amor sobre o mundo e a sociedade, é preciso vê-los não como entidades imutáveis, absolutas - divinas! - mas como fazendo parte integrante da criação sobre a qual, enquanto "rei da criação," eu sou chamado a agir. "Há duas maneiras de aceitar o mundo, observa o padre Bulgakoff: 1) uma maneira natural, pagã: o homem permanece vítima das forças naturais [sociais e psicológicas] deificadas por ele, não pode libertar-se da embriaguez orgiástica, da escravidão em relação à natureza [ou às estruturas sociais - monarquia, etc.] que ele adora (são assim todas as religiões pagãs - egípcia, helênica, babilônica, etc); 2) uma maneira cristã: o homem "aceita" o mundo (e a sociedade) como a criação de Deus, da qual é o chefe; aceita com amor, mas também com o sentimento da sua independência própria de um ser consciente da sua espiritualidade... O homem não é somente o [animador] econômico do mundo, o senhor da criatura (e do devir social). Tem o direito e o dever de trabalhar no mundo, pela sua própria existência, para ajudar o seu próximo e para cumprir a obra comum da humanidade conforme o preceito de Deus: "Submetei a terra e reinai sobre ela" (Gen. 1:28) (Citado por Boris BOBRINSKOY: Nicolas Cabasillas et Ia spiritualité hésychaste; em "La Pensée orthodoxe", N.° I . Paris, 1966, p. 12). Há nesta atitude a respeito do mundo ao mesmo tempo um grande otimismo e um são realismo. Otimismo porque, em Cristo, o Inefável se manifestou como animando já desde o interior toda a realidade social, política e econômica. "Porque ela está centrada sobre o Senhor ressuscitado e exaltado, a Ortodoxia encara este mundo como o prelúdio da vitória final, que dá glória já a todas as coisas deste mundo. A visão do mundo exaltado por causa da Cruz e especialmente da Ressurreição dá-nos a possibilidade de ver toda a situação humana como potencialmente transfigurada e regenerada pela certeza da vitória [última]... O Espírito Santo está em ação na história como um novo criador depois da Ressurreição, dando a vida nova, restaurando a criatura decaída frente ao seu criador... A natureza não deve ser separada da graça" (N. A. Nissiotis, op. cit. p. 59). Mas também - esta atitude é inseparável do otimismo decorrente da confiança no Inefável ativo no mundo - são realismo, porque esta mesma sociedade dos homens, na sua totalidade, ainda não tomou consciência da sua humanidade real. "É preciso nunca esquecer que o mundo ainda não está plenamente e diretamente submetido a Deus" (Ibid. p. 63) e que, precisamente por essa razão, ele tem ainda necessidade de que homens lúcidos e corajosos, humildes mas recebendo sempre de novo a certeza do dinamismo divino no humano, contribuam, pelos seus atos e pelo seu testemunho verbal, para esta tomada de consciência universal. É pois possível agir com amor sobre o mundo e a sociedade porque eles são criação e não "divindade," e o homem é deles responsável. Neste empenhamento, o homem participa do Inefável que humaniza e orienta o devir social, político e econômico, empenhamento necessário porque a humanização do mundo está longe de ter chegado ao seu termo.

Se a disponibilidade no amor para com os outros determina a qualidade de vida dos indivíduos, ela não deixa de ter incidentes sobre a evolução de todo o corpo social. De um ponto de vista histórico, como já se viu, este impulso que visa dar à realidade social a sua qualidade autenticamente humana tem, em primeiro lugar, consistido na irradiação cultural que era a das Igrejas bizantinas e russas. Estas criaram uma "ambiência" cristã que influencia o conjunto da sociedade, sem que todo o mundo disso tivesse consciência. "Pode ser-se cristão, observa o padre Bulgakoff, seja em que estado for. No meio da ação interior espiritual, todo um mundo de 'valores' cristãos se elabora no Estado, a economia, a civilização; assim se forma aquilo que se chama o espírito de uma época. A Ortodoxia mostrou a sua força educando os povos do Oriente - Bizâncio, Rússia, povos eslavos..." (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 217). Através dos inumeráveis ritos que, ao longo da sua existência quotidiana, lhe permitem lembrar-se da presença do Inefável - e da sua exigência de humanidade - o fiel ortodoxo vive da irradiação difusa do amor e da ultrapassagem de si mesmo na vida social e cultural própria da sua condição. O povo russo, por exemplo, tal como o acentua Nicolau Arseniev, "reencontrava o seu equilíbrio, um eixo na vida da Igreja. O elemento caótico, a exuberância dos sentimentos, encontrava o seu contrapeso na ordem regulada dos usos e costumes religiosos, no quadro ritual da Igreja, na tradição familiar santificada pela vida religiosa... [Tratava-se pois de,] uma penetração de todo o ser por uma disciplina espiritual que confere uma beleza religiosa a toda a conduta, a toda a maneira de se comportar, humilde e ao mesmo tempo cheia de um sentido de responsabilidade religiosa e de dignidade interior" (Nicolas Arseniev, op. cit., p. 47). Sobre este ponto, a cultura russa pré-revolucionária prolongava a civilização bizantina a qual, no seu todo, refletia a ambiência cultural resultante do encontro do Evangelho com o dado social e psicológico herdado da época helênica. "Entre helenismo e cristianismo, pólos (da) civilização (bizantina) não há propriamente uma fusão, mas uma fecunda 'sinfonia' que por vezes se rompe para dar lugar a uma tensão sem compensação. O helenismo ficou muito longe de ter perdido a sua carga da sua sacralidade - de imanência social e cósmica. O cristianismo, apesar da tentação imperial, preserva o seu caráter escatológico: ele pode animar, mas não isolar-se" (Olivier Clément: L'Essor du Christianisme oriental. Paris, 1964, p. 51).

Ora, na medida em que a origem deste "clima," que influi sobre a legislação, os costumes e as artes de determinada sociedade é o Inefável manifestado em Cristo através da Igreja, subsistirá sempre a inevitável tensão entre as forças desumanizantes de desintegração própria de toda a sociedade - cristalizando-se muitas vezes em ideologias estatais ou não - por um lado, e o impulso sempre novo, escatológico, que emana dos homens disponíveis a Deus, verdadeiramente humanos, por outro. É certo que, neste plano, a visão homogênea da realidade própria da ortodoxia, visão que, como já se viu, é da ordem do "coração," intuitiva e poética, apresentou o inconveniente de impedir a Igreja na Rússia czarista ou na Grécia contemporânea, por exemplo, de se distanciar em relação a uma ordem social corrompida e de a contestar, ordem com a qual, pelo fato da sua visão sintética estética, ela se identificou muito facilmente. "O fundamento ideal da Ortodoxia, comenta a este propósito o padre Bulgakoff, não é ético, mas estético-religioso; é a visão da beleza espiritual;... Não se poderia negar que este esteticismo espiritual degenera por vezes em indiferença a respeito das necessidades práticas, e sobretudo a respeito da educação metódica da vontade,; infelizmente, isso pode observar-se em momentos de crise histórica... A Ortodoxia dá sobretudo uma educação ao coração, está nisso a sua marca distintiva, a fonte da sua superioridade assim como da sua fraqueza, isto é, da falta de educação da vontade" (Serge Bulgakoff, op. cit., p. 218).

Esta ambigüidade que a Igreja ortodoxa não conseguiu ainda superar inteiramente, ambigüidade de uma irradiação difusa no "mundo," irradiação que resulta certamente da presença do Inefável, mas combinada por vezes com a incapacidade de deduzir daí uma contestação construtiva da ordem estabelecida, esta penumbra ética deveria muitas vezes marcar as relações entre a Igreja e o Estado nos países ortodoxos. O ideal do imperador cristão, encarnado pelo imperador Constantino, influirá muito profundamente sobre a concepção bizantina destas relações que serão definidas pelos teólogos ortodoxos como uma "sinfonia" do Estado e da Igreja. Esta foi vivida em Bizâncio, - muitas vezes em detrimento da liberdade da Igreja - através da colaboração entre Imperador e o Patriarca, tal como no império russo, principalmente com Ivan o Terrível e depois Pedro o Grande, este frágil equilíbrio será quebrado em proveito de um "cesaropapismo" - controle da Igreja pelos órgãos do Estado - abertamente reconhecido. Esta mesma identificação com a ordem existente, como já se viu, enfeudará a Igreja ortodoxa aos diversos nacionalismos gregos, eslavos e árabes, que agitarão o mundo ortodoxo durante e após a libertação dos territórios ocupados pela Turquia. "Eu não creio, nota o padre Schmemann, que alguém possa negar que um dos fatos da teocracia bizantina que assombrou por muito tempo a história do Oriente ortodoxo tenha sido o desenvolvi mento dos nacionalismos religiosos, levando à fusão progressiva da Igreja da sua estrutura, da sua organização com uma nação, fazendo dela a expressão de uma vida nacional" (Alexander Schmemann: La Primauté de Pierre dans FÉglise orthodoxe. Neuchâtel, 1960, p. 148). Ainda hoje, a Grécia vive num regime de relação Estado-Igreja que poderia facilmente ser descrito nestes termos (A atitude oficial da Igreja grega para com o "regime dos generais" saldo do golpe de Estado de abril de 1967 é significativa a este respeito). Destas relações com o Estado, ainda, se inspiram nos nossos dias certos artigos de édito real promulgado em 1833: "Em todos os assuntos respeitantes à sua vida interna, a Igreja age independentemente dos órgãos do Estado; entretanto, como a supervisão de tudo o que se passa dentro das suas fronteiras confere prerrogativas inalienáveis ao Estado, o governo tem o direito de ser informado do objeto das discussões do Sínodo [autoridade da Igreja] cujas decisões não podem portanto ser publicadas nem executadas sem o acordo do governo" (Artigo 9 do Decreto real de 23 de Julho de 1833, citado em Die orthodoxe Kirche in griechischer Sicht, referido por Bratsiotis. Vol. 11. Estugarda, 1960, p. 40). Enfim, parece provável que o espírito de submissão às autoridades civis de que dá prova ainda atualmente a hierarquia da Igreja ortodoxa na Rússia soviética não é inteiramente estranha a uma certa reminiscência da "sinfonia" bizantina entre o Estado e a Igreja.

Se o dinamismo social que emana da Igreja ortodoxa teve por efeito sobretudo incluir o Estado de forma orgânica na "cristandade" oriental, com o risco de perder o sabor revolucionário que lhe devia ser próprio porque ele é de Deus, entretanto não faltam os exemplos de situações em que a Igreja ortodoxa, por intermédio dos seus membros mais corajosos, contestou o poder tirânico de um rei, de um governo desumano. Conhece-se o diálogo pungente entre Ivan o Terrível e S. Filipe (1507-1570), que ousou reprovar ao czar a sua crueldade, coragem que pagará com a vida. Eis o diálogo que, pela mesma ocasião, resume admiravelmente a visão ortodoxa do papel legítimo - portanto humanizante - do Estado.

Filipe - "Senhor, tu que exerces um ministério cuja honra ultrapassa todos os outros, inclina-te perante Deus que te concedeu uma autoridade cujo cetro terrestre não passa de um símbolo do cetro celestial. Somente assim poderás tu ensinar os homens a viverem segundo a justiça. Respeita a justiça instituída por Deus, reina em paz e justamente. As paixões terrestres assemelham-se à água de um rio que se perde na natureza, enquanto que apenas o tesouro celestial da verdade subsiste. Mesmo que tu ocupes um cargo importante, pela tua natureza corporal és semelhante a qualquer homem: sem dúvida, tu foste criado à imagem de Deus, mas não deixas de continuar um ser terrestre. Só merece o título de soberano aquele que sabe dominar-se a si mesmo, que não sucumbe às suas paixões e alcança a vitória pelo amor. Porventura já alguma vez se ouviu dizer de czares verdadeiramente cristãos que suscitem a perturbação no seu próprio país? Nem os povos estrangeiros alguma vez conheceram semelhante escândalo."

Ivan - "Monge, que te importam os meus projetos, se eu sou o czar!' Não sabes que os meus súditos me querem eliminar?

Filipe - "Não te iludas a ti próprio pelo teu receio nada razoável e sem fundamento. O santo concílio e tu mesmo me instituíste pastor da Igreja de Cristo, e nós estamos todos ao teu lado para assegurar a salvação da cristandade ortodoxa."

Ivan - "Santo padre, eu te repito: cala-te e abençoa-me como eu desejo."

Filipe - "Se nós nos calássemos, a tua alma sucumbiria ao pecado e o povo seria ameaçado de morte. Quando, num navio, um passageiro sucumbe à tentação, os seus companheiros não correm grande risco, mas, se o mesmo acontece ao capitão, o barco pode naufragar. Se eu me submetesse à vontade dos homens, como poderia ter a audácia de declarar, aquando da vinda do Senhor: 'Eis-me aqui, a mim e aos filhos que me confiaste!' Não disse o próprio Cristo no seu Evangelho: 'Não há maior amor do que dar a vida pelos seus amigos, e é por este amor que vós deveis ter uns pelos outros, que reconhecerão que sois meus discípulos!' Eis o que nós pensamos e neste ponto manter-nos-emos irredutíveis."

Ivan - "Santo pai, os meus amigos e os membros da minha família levantaram-se contra mim, como foi o caso do rei David que exclamou: Os meus parentes abandonaram-me: aqueles que querem a minha vida lançam-me os seus laços."

Filipe - "Senhor, são homens os que tentam induzir-te em erro, escuta os verdadeiros sábios e não dês ouvidos aos bajuladores; não partilhes o teu poder, porque tu foste estabelecido por Deus para exercer a justiça no povo e não para adquirir reputação de tirano; tudo desaparece cá em baixo, mesmo a glória e a honra; só permanece a vida em Deus; será despojados dos nossos bens terrenos que deveremos dar contas da nossa vida. Repele para longe de ti os caluniadores e unifica o teu povo, porque Deus não está presente senão onde reinam a unidade e o amor sincero."

Ivan - "Não contestes a minha soberania, senão a minha cólera inflamar-se-á contra ti. Ou, então, abandona o teu cargo!"

Filipe - "Eu não te pedi, nem diretamente nem por interpostas pessoas que me investisses neste ministério, nem paguei a ninguém para receber esta honra. Porque me arrancaste à solidão e à companhia dos santos monges? Se tens a coragem de invocar os cânones [= legislação eclesiástica] fá-lo; por mim, quando chegar a hora do martírio, ficarei firme" (Emst Benz: Russische Heiligenlegenden. Zurique, 1953, p. 418-419).

Este exemplo - poderiam citar-se similares tirados da história de Bizâncio - mostra que onde a Igreja é realmente a comunidade dos que têm consciência da igualdade de todos em dignidade, da justiça sinal do Inefável, ela assume a tensão entre si mesma e um Estado cujas práticas comprometem o humano, ela ousa interpelá-lo, pô-lo em questão, com o risco do martírio se for preciso. O governo do Estado é a expressão da vontade de Deus somente na medida em que permite aos habitantes dos países viverem na "unidade e no amor sincero." Porque não lhes parece ser esse no Estado bolchevista dos primeiros anos após a Revolução de 1917, dignitários eclesiásticos russos aceitaram o martírio, certamente não por anticomunismo de princípio, mas porque o novo regime lhes parecia, em fatos e não em teoria, dar lugar a injustiças e a crimes ainda piores que os do antigo, tanto mais que ele tinha inscrito na própria constituição o ateísmo doutrinário, limitação do homem às suas dimensões empíricas. Mas, e é o que importa sublinhar aqui, os teólogos ortodoxos reconhecem hoje que, em princípio, tais contestações do Estado pela Igreja não devem ter por objeto o sistema de governo, mas unicamente a forma humana - ou desumana - de o exercer. Por outras palavras, "(se) durante longos séculos, a Ortodoxia estava ligada à monarquia [que] lhe prestou muitos serviços causando-lhe também graves feridas... não há nenhum laço interior e imutável entre a Ortodoxia e este ou aquele sistema de governo... [É certo que] o ideal da transformação do Estado pelas energias interiores da Igreja subsiste em toda a sua força na época [atual] da separação da Igreja e do Estado... não se [exercendo] a ação nem de cima nem de fora, mas do interior, a partir de baixo, do povo e pelo povo... [Assim] a Igreja exerce a sua influência sobre as almas [e, portanto, sobre a qualidade humana do governo] pela via da liberdade que só corresponde à dignidade cristã" (Serge Bulgakoff, op. cit., p. 228-229; 230-231).

Se a tranqüila irradiação do amor vivido nos fatos e nos gestos e o exemplo da vida quotidiana dos crentes, interpelando e contestando assim o mais desumano dos regimes, é mais importante, aos olhos da Igreja ortodoxa, do que qualquer espécie de doutrina sobre as relações entre Estado e Igreja, o mesmo se passa no que diz respeito à ação humanizante do Inefável, através daqueles que disso estão conscientes, sobre as estruturas econômicas e sociais da sociedade. "Os ortodoxos não têm nem sistema social, nem teoria cristã determinada das relações sociais, nem doutrina teológica do trabalho e da profissão, ou da moral sexual, nem posição definida sobre o controle dos nascimentos, nem princípio diretivo sobre a industrialização, nem juízo teológico sobre a secularização moderna. O papel da Igreja não é o de propor normas que sejam aplicáveis em toda a parte e que dêem origem a uma única forma de civilização ou de cultura técnica" (N. A. Nissiotis, op. cit., p. 58). Mas não é menos verdade que o crente ortodoxo, consciente do dinamismo divino no tempo e no espaço, se sente chamado a agir efetivamente sobre as estruturas, as tradições, os movimentos que determinam a sociedade. "A doxologia [= adoração e louvor de Deus] não é simples contemplação ou ilusão visionária: é uma participação dinâmica na glória de Deus, revelada em Cristo e na sua Igreja, tornando possível a renovação contínua da ação no mundo" (Ibid., p. 57). Assim, "a Ortodoxia está, por essência, continuamente aberta a novos desenvolvimentos em cada situação do mundo" (Ibid., p. 58).

A certeza da presença humanizante de Deus imprime, entretanto, à ação social e econômica uma certa orientação de base. Assim, à partida, o único fundamento na edificação da sociedade para o cristão será o arrependimento, isto é, o realismo lúcido frente às suas próprias fraquezas, portanto a disponibilidade em face do movimento profundo do mundo - Deus - lucidez donde decorre a recusa em conferir um valor absoluto a qualquer espécie de sistema, de ideologia social e econômica. "Todos os homens, nota ainda Nissiotis, são convidados a juntar-se à comunidade cristã participando na Palavra e nos sacramentos e a começar assim a tomar consciência de que todo o seu ser e toda a sua vida no mundo são para oferecer a Deus por amor de toda a sociedade. Os sábios e os sociólogos em particular exercem, em certo sentido, uma ação parassacerdotal na humanidade resgatada por Jesus... Mas... o significado de uma tal situação não aparece automaticamente sem que o homem faça um ato de arrependimento, não se alimente perpetuamente dos sacramentos e não faça a experiência da realidade da vida eclesial" (Ibid., p. 66). É neste espírito de disponibilidade que o crente se sentirá chamado a colaborar ativamente - e sem reserva mental com os especialistas, sociólogos, políticos e economistas, crentes ou não, que se dediquem a tudo o que compromete a vida dos homens, a toda a estrutura ou concentração de poder que compromete a dignidade humana - as desigualdades sociais, a exploração de um grupo por outro, o analfabetismo, etc.

Desta posição aberta mas firma podem decorrer, no contexto do mundo atual, opções político-econômicas exatas. Tal é por exemplo a do padre Bulgakoff que conheceu bem os sistemas marxista e capitalista, mantendo distâncias em relação a um e a outro:

Não é possível suprimir o [capitalismo industrial] porque ele é economicamente inevitável; só resta dar-lhe um sentido cristão e enobrecê-lo. Em vez de organizar a exploração, trata-se de organizar o trabalho de toda a humanidade a fim de que ele sirva aos fins supremos desta e ao amor cristão, e não ao prazer e à cupidez... A Ortodoxia não deve [por isso] opor-se ao socialismo se este reconhecer a liberdade individual; bem pelo contrário, porque este socialismo é o cumprimento do mandamento do amor na vida social... [Com] efeito o cristianismo está acima das classes limitadas e egoístas... [Assim] a Ortodoxia não se põe em guarda contra a propriedade privada. A propriedade privada é uma instituição histórica cujas formas variam em todo o tempo assim como a sua importância social: não tem uma forma de valor durável, intrínseco. A Ortodoxia não pode pois defender o sistema capitalista, porque ele está fundado sobre a exploração do trabalho assalariado: ela só provisoriamente poderá transigir com este sistema. em razão dos seus méritos: porque aumentou a produtividade do trabalho e a energia criadora. Mas há aqui limites indubitáveis: a sua transgressão não se pode justificar.

O cristianismo não pode transigir com a escravatura... nem com a exploração do trabalho das crianças, praticado pelo capitalismo no seu começo... [Em conclusão] não há senão um valor supremo, à luz do qual é preciso julgar as formas econômicas: é a liberdade individual no direito e na economia. Portanto, a melhor forma de vida econômica e social - qualquer que seja o seu nome e seja qual for a maneira por que sejam combinados o capitalismo e o socialismo, a propriedade privada e a propriedade pública é a que melhor assegura, num dado estado de coisas, a liberdade pessoal, preservando-a de pobreza natural [fome e nudez] e da escravidão social [sob todas as formas, mesmo refinadas, como a das grandes indústrias atuais]. Eis por que o ponto de vista ortodoxo a respeito das formas econômicas tem, antes de tudo, em conta a história [animada por Deus]. É o domínio do relativismo dos meios; só o fim permanece imutável (Serge Bulgakoff, op. cit., p. 239, 241, 243, 245-246 (extractos)).

Na base do que acaba de ser dito, poder-se-ia supor que a Igreja ortodoxa foi, ao longo da sua história, um poderoso fermento de humanização na massa social, que exerceu uma influência positiva em todo o lado onde quer que se tratasse de modificar as antigas estruturas sociais, econômicas e políticas em proveito de formas mais justas e eficazes. De fato, como já se viu, dada, por exemplo, a impotência da Igreja russa para transformar em profundidade as estruturas de uma sociedade que se dizia "muito ortodoxa," ou ainda as hesitações da Igreja da Grécia neste domínio, poderia concluir-se por um fracasso da Ortodoxia no plano das responsabilidades sociais e políticas. Encontramos aqui a ambigüidade própria da visão homogênea das coisas na medida em que ela impede uma análise crítica dos dados empíricos e uma ação incisiva. Entretanto, tal como o faz notar o teólogo luterano Emest Benz, "temos de constatar aqui que a pesquisa histórica neste domínio é ainda embrionária. Não existe, por exemplo, estudo histórico da participação da Igreja ortodoxa russa na libertação dos servos dos meados do século XIX ou ainda... nas revoluções de 1905 e 1917" (Emst Benz: Geist und Leben der Ostkirche. Hamburgo, 1957, p. 127). É verdade, além disso, que a Igreja russa do último século, ainda que a sua hierarquia, fechada no seu atavismo bizantino de apoio incondicional ao czar, não' fosse nada acessível a um "socialismo" cristão, viu surgir das suas fileiras padres e leigos corajosos que não têm medo de pagar com as suas pessoas a contestação da ordem estabelecida e promover as reformas indispensáveis. Assim, por exemplo, o padre Gregório Petrov que, em 1908, não hesita em dirigir-se ao seu bispo nestes termos: "Não existe imperador cristão, de governo cristão e de ordem social cristã. De fato, as classes superiores da sociedade dirigem as classes inferiores, uma minoria reina sobre o conjunto da população... Os dirigentes afastaram as massas populares de tudo: do poder, das ciências, das artes, até da religião; fizeram desta última a sua serva obediente..." (Cit. ibid., p. 129) "Fazer política, diz-se noutro passo, é antes de tudo papel da Igreja. No fundo, toda a ação da Igreja é 'política,' se se entende por 'política' a arte da edificação humana da vida social. Os Evangelhos - a doutrina do Reino de Deus - constituem a única base sobre a qual é possível organizar em proveito de todos a vida política e social" (Cit. ibid). O padre Petrov foi excluído da Igreja. Sabe-se também que a procissão dos peticionários de 1905, que conduziam ícones e imagens do czar, e que os cossacos massacraram terrivelmente, que esta procissão cuja repressão pelo poder provocou as primeiras perturbações revolucionárias, era conduzida por um padre, o padre Gapon, que havia de escrever após estes incidentes sangrentos: "Eu dirigi-me para junto do czar com a confiança ingênua de que ele nos faria justiça (pravda)... mas as balas dos soldados czaristas que assassinaram os que levavam as imagens do czar, trespassaram essas imagens, matando a nossa confiança no imperador" (Cit. ibid., p. 130-131). Mesmo que não se veja uma relação direta entre a Ortodoxia e a revolução russa, senão talvez através da fé de um Kerenskij que se dizia crente, e sobretudo, negativamente, através do objeto de propaganda em que iria tornar-se, entre as mãos dos bolcheviques, o tradicionalismo decrépito dos dirigentes ortodoxos russos, encontraram-se, pois, na Igreja russa, homens bastante crentes para ousarem viver até ao fim as implicações sociais e políticas da irrupção do Inefável. Mas tudo isto se fez, infelizmente, sem ordem nem continuidade, de maneira espontânea e desorganizada.

E preciso reconhecer que o impulso humanizante que emana da Igreja ortodoxa da Grécia aparece mais visível. Desde a independência proclamada em 1821, a Igreja da Grécia, através de diferentes movimentos de despertar religioso, tendo cada um as suas implicações sociais (recorde-se o fundado pelo teólogo leigo Makrakis, morto em 1905) marcou com o seu sinal as estruturas sociais e políticas do país, permitindo, entre outras coisas, a criação de uma rede de obras sociais, de instituições pedagógicas, de orfanatos e outros. Fundando, por exemplo, a "Diaconia apostólica," instituição de entreajuda, a Igreja da Grécia criou para si um instrumento de ação que não se limita ao trabalho de reparação, mas pode fazer penetrar, a todos os níveis das estruturas políticas e sociais do país, o sentido do humano na sociedade grega contemporânea. Este movimento, tal como o denotam os teólogos gregos avisados, deve ainda ampliar-se a fim de que seja suplantado o perigo de imobilismo sempre inerente, como já se viu, a uma Igreja que considera automaticamente como membros seus, todos os cidadãos do país.

A sua participação no movimento ecumênico permitirá certamente à Ortodoxia redescobrir sempre melhor as suas próprias intuições segundo as quais a irrupção de Deus no mundo pode - e deve - ter um efeito concreto sobre as relações humanas vividas não somente no frente a frente de pessoas, mas ainda através do conjunto das instituições políticas, econômicas e sociais que podem, se permitirem o desabrochar da vida, tornar o rosto do amor do próximo de "larga visão." E hoje esta ação deve revestir uma dimensão universal. Como o diz Mons. Emilianos, teólogo grego representante do patriarca de Constantinopla junto do Conselho ecumênico: "Trata-se de falar a linguagem do nosso tempo, de compreender as necessidades dos homens atuais, de tomar consciência dos grandes problemas postos à consciência dos humanos. Não é ignorando o mundo de hoje que se pode pensar em aproximá-lo de Deus. As estatísticas dizem-nos que 60% da humanidade dispõe dos 70% das riquezas do mundo, que a situação, em vez de melhorar, tende a agravar-se, no sentido em que, apesar do progresso das regiões em vias de desenvolvimento, se cava cada vez mais fundo o fosso entre as nações fortemente desenvolvidas e as outras. Por outro lado, 16% dos seres humanos muito favorecidos representam as nações do Atlântico norte, de tradições cristãs. Chegou o tempo de mobilizar toda a influência e toda a atividade da Igreja - a todos os níveis e entre todos os seus membros numa campanha de longo fôlego contra a inércia dos fiéis, contra a solidão, a pobreza no mundo. Esta solidariedade evangélica apresentar-se-á, pois, na Igreja, como uma força moral que tem por objeto exercer uma influência educativa e inspiradora com o fim de estabelecer a justiça e o desenvolvimento e de assegurar a vitória sobre a pobreza no mundo. É preciso a todo o custo que os cristãos, clero e fiéis, adquiram uma consciência clara desta questão do subdesenvolvimento: [é preciso que] se projetem sobre programas de ação... Uma vez mais a Igreja deve ajudar os homens a compreender que o pecado não é ser rico de bens, mas não os usar como devem ser usados" (Emilianos Timiadis: À Ia redécouverte de notre Frère, ed. pelo "Comité das Igrejas junto dos trabalhadores migrantes na Europa ocidental" (policopiado). Genebra, 1967, p. I-2).



Edição da Igreja da Proteção de Nossa Senhora

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Editor: Bishop Alexander (Mileant)

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