SOBRE OS OITO PENSAMENTOS DE MALÍCIA - CASSIANO O ROMANO
CASSIANO O ROMANO
AO BISPO CASTOR SOBRE
OS OITO
PENSAMENTOS DE MALÍCIA
AO HIGOUMENO LEÔNCIO,
SERMÃO CHEIO DE
BENEFÍCIOS ESPIRITUAIS
A RESPEITO DOS
PADRES DE SCETA E DO
DISCERNIMENTO
Cassiano o Romano
Nosso santo Padre
Cassiano o Romano viveu no reinado de Teodósio, por
volta do ano 430.
Dentre as obras que ele escreveu, expomos aqui o tratado
sobre os oito
pensamentos e o tratado sobre o discernimento, que transpiram
socorro e graça.
Photius os menciona nos seguintes termos:
“O segundo tratado tem
como título: “Sobre os oito pensamentos”. Ele trata
da gula, da
prostituição, da avareza, da cólera, da tristeza, da acídia, da
vanglória e do orgulho.
Mais do que quaisquer outros, estes textos vêm em
auxílio daqueles que
escolheram travar o combate da ascese; eu também li
um terceiro pequeno
tratado, no qual é ensinado o sentido do discernimento,
que ele é a maior das
virtudes, de onde nasce e o quanto ele representa o
mais alto dom do alto.”
A Igreja celebra a
memória de são Cassiano em 29 de fevereiro, honrando-o
com muitos louvores*
Cassiano não era romano
de nascença. De “nação cita”, segundo Gennade de
Marselha, ele nasceu
perto do ano 360. Vinte anos depois, nós o encontramos
na Palestina num
mosteiro em Belém, de onde ele partiu para o Egito, atraído
pelo grande renome dos
Padres do deserto. Com seu amigo Germano, ele
visitou os principais
centros monásticos do Baixo Egito, em especial Nitria e
as Kellia, antes de se
fixar por muitos anos no deserto de Sceta. Cerca do ano
400, as controvérsias
origenistas que perturbaram o deserto obrigaram à sua
partida para
Constantinopla, aonde ele foi ordenado diácono por são João
Crisóstomo. Em 404,
quando este foi expulso de sua cadeira, Cassiano partiu
para Roma para
interceder em seu favor perante o papa Inocêncio.
Chegando a Marselha em
415, Cassiano fundou aí a abadia de Saint-Victor e
um convento de freiras.
Foi para estas comunidades e para todas as da
Provence que ele se
dispôs a compor suas duas obras mais célebres, as
Instituições
cenobíticas e as Conferências espirituais, nos quais ele reporta os
usos e ensinamentos dos
monges do Egito. Estas obras fizeram grande
sucesso não apenas no
Ocidente mas também no Oriente. Temos razões para
pensar que elas foram
traduzidas ao menos parcialmente para o grego a partir
do século V, pois,
desde o século seguinte a compilação sistemática dos
Apophtegma Patrum
traduzida por Pelágio e João apresenta muitos extratos
manifestamente
traduzidos do grego. Os extratos contidos na Filocalia
provêm, seja dos Livros
V a XII das Instituições, seja das duas primeiras
Conferências. O texto
grego às vezes resume o original latino, às vezes o
traduz por inteiro. É
este texto grego da Filocalia que seguimos aqui.
DE SÃO CASSIANO O
ROMANO AO BISPO CASTOR
SOBRE OS OITO
PENSAMENTOS DE MALÍCIA301
1. Após termos composto
um primeiro sermão sobre as observâncias
presentes nos mosteiros
cenobíticos, apresentaremos agora, fortalecidos pelas
preces de muitos de
vocês, este texto sobre os oito pensamentos de malícia, a
saber, a gula, a
prostituição, o amor ao dinheiro, a cólera, a tristeza, a acídia, a
vanglória e o orgulho.
Da continência do
ventre
Trataremos
primeiramente da continência do ventre que se opõe à gula, da
medida dos jejuns, da
qualidade e da quantidade dos alimentos. E não
falaremos por nós
mesmos, mas conforme a tradição dos santos Padres. Estes
não nos legaram uma
regra única para o jejum, nem um modo único de tomar
a refeição, nem uma
medida uniforme, pois nem todos possuem o mesmo
vigor, nem a mesma
idade, nem a mesma saúde, nem a mesma constituição
física. Entretanto, o
objetivo que foi transmitido a todos é o mesmo: fugir da
saciedade e recusar
absolutamente a repleção do ventre. Eles consideravam
que o jejum cotidiano
era mais benéfico e favorável à pureza do que um
jejum prolongado de
três ou quatro dias ou mesmo de uma semana. De fato, o
prolongamento excessivo
do jejum é, muitas vezes, pior do que o excesso de
alimento. Pois na
seqüência de uma abstinência imoderada o corpo está
enfraquecido e não é
mais assíduo das liturgias espirituais, enquanto que o
corpo pesado pelo
excesso de comida causa à alma a acídia e o relaxamento.
[5,2] Por outro lado,
eles achavam que não convém a todos comer apenas
legumes verdes ou secos
e que nem todos podem se alimentar só de pão seco.
Um, diziam eles, come
duas libras de pão e ainda tem fome; outro fica
saciado com uma libra
ou mesmo com apenas seis onças. Assim, a todos,
como foi dito, eles
transmitiram uma única regra de continência: não ser
traído pela saciedade
do ventre302, nem arrastado pelo prazer da boca. Pois
301 Cf. Instituições
cenobíticas, 5-12; P.G. 28, 872-905.
302
Cf. Provérbios XXIV, 15.
não é somente a
qualidade dos alimentos, mas também a quantidade que
normalmente atiça os
tragos inflamados da prostituição.
[5,6] De fato, qualquer
que seja o alimento com o qual o ventre foi
preenchido, ele
engendra uma semente de prostituição. E não é somente o
excesso de vinho que
embriaga a razão, mas também a superabundância de
água e o excesso de
qualquer comida a tornam pesada e sonolenta. A ruína
dos Sodomitas não foi
causada pela embriaguez do vinho e o excesso de
comidas variadas, mas,
segundo o profeta, pela saciedade de pão303
.
[5,7] A fraqueza do
corpo não é um obstáculo à pureza do coração, quando
damos ao corpo o que a
fraqueza exige, não o que o prazer deseja. É preciso
utilizar os alimentos
na medida em que são úteis para viver e não a ponto de
nos tornarmos presas
dos assaltos da concupiscência. A absorção moderada e
razoável de alimentos,
para manter a saúde do corpo, não destrói a pureza.
[5,8] Uma medida e uma
regra exata da temperança nos foram transmitidas
pelos Padres: quando
comemos, devemos parar enquanto ainda temos apetite
sem esperar estarmos
saciados. Quando o Apóstolo diz que não devemos nos
preocupar com a carne
no sentido de satisfazer sua concupiscência304, ele não
proíbe prover as
necessidades da vida, mas condena a busca do prazer.
[5,10] Por outro lado,
para uma perfeita pureza da alma, apenas a abstinência
de alimento não é
suficiente sem o socorro das demais virtudes. Assim, a
humildade, pela prática
da obediência e pelo labor que doma o corpo, nos traz
grandes benefícios.
Abster-se da avareza, não apenas das riquezas, mas até do
desejo de adquiri-las,
conduz à pureza da alma. A abstinência de cólera, de
tristeza, de vanglória
e de orgulho, tudo isto produz a pureza universal da
alma. Mas para a pureza
específica da alma que é obtida pela castidade, a
abstinência e o jejum
possuem uma eficácia notável. É de fato impossível a
quem enche o ventre, de
combater o espírito da prostituição em seu
pensamento. Eis porque
nosso primeiro combate deve ser o de dominar o
ventre e reduzir o
corpo à escravidão, não apenas pelo jejum, mas pelas
vigílias, a prece, a
leitura e a concentração do coração no temor da Geena e
no desejo pelo Reino
dos céus.
303
Ezequiel XVI, 49.
304
Romanos XIII, 14.
Do espírito da
prostituição e da concupiscência da carne
2. [6,1] Nosso segundo
combate é contra o espírito da prostituição e a
concupiscência da
carne, que começa a atormentar o homem desde a primeira
idade. É um combate
imenso e difícil, pois comporta uma dupla luta.
Enquanto que os outros
vícios são combatidos apenas na alma, este deve sê-lo
simultaneamente na alma
e no corpo: assim, é preciso travar contra ele um
duplo combate. Com
efeito, o jejum corporal não é bastante pata para adquirir
a castidade perfeita e
a verdadeira pureza, se não existir ao mesmo tempo
também a contrição do
coração, uma prece dirigida a Deus com perseverança,
uma meditação contínua
das Escrituras, a fadiga e o trabalho manual, tudo
aquilo que pode
reprimir os impulsos flutuantes da alma e desviá-la das
imaginações
vergonhosas. Mas, sobretudo, é preciso a humildade da alma,
pois, sem ela, não é
possível dominar a prostituição, tanto quanto os outros
vícios.
[6,2] É preciso, antes
de mais nada, guardar com o maior cuidado o coração305
dos pensamentos
impuros. Pois, como disse o Senhor, “é do coração que
saem os maus
pensamentos, homicídios, adultérios, prostituição e todo o
resto306”. De fato, o
jejum não nos foi ordenado apenas para atormentar o
corpo, mas também para
manter o intelecto sóbrio e vigilante; este,
obscurecido pelo
excesso de comida, é incapaz de supervisionar os
pensamentos.
Certamente, é preciso mostrar o maior zelo no jejum corporal,
mas também na guarda
dos pensamentos e na meditação espiritual; senão é
impossível elevar-se ao
cume da castidade e da pureza. É preciso então, como
diz o Senhor, purificar
primeiro o interior do copo e do prato, a fim de que o
exterior fique puro307
.
[6,5] É por isso que,
se tivermos no coração a determinação, como diz o
Apóstolo, de combater
segundo as regras e sermos coroados308 por haver
vencido o espírito da
prostituição, não o confiemos à nossa própria força e à
nossa ascese, mas ao
auxílio de Deus nosso Senhor. Pois não haverá repouso
305
Cf. Provérbios IV, 23.
306
Mateus XV, 19.
307
Mateus XXIII, 26.
308
Cf. 2 Timóteo II, 5; IV, 7.
para o homem atacado
por este espírito enquanto ele não crer realmente que
não será nem por sua
aplicação nem por suas penas , mas pela proteção e a
ajuda de Deus, que ele
poderá se livrar desta doença e atingir o cume da
castidade.
[6,6] A coisa está
acima da natureza e se trata, de certa maneria, de sair da
carne, mais do que
pisotear os aguilhões da carne e de seus prazeres sob seus
pés. Eis porque, é, por
assim dizer, impossível ao homem elevar-se com suas
próprias asas até este
cume e esta recompensa celeste, e tornar-se o imitador
dos anjos; é preciso
que a graça de Deus o arranque da terra e da lama. Com
efeito, nenhuma outra
virtude, tanto quanto a castidade, torna iguais os anjos
e os homens ligados à
carne. Por meio desta virtude, ainda que vivam sobre a
terra, eles possuem,
segundo o Apóstolo, “sua cidadania nos céus309”.
[6,10] O sinal de que
você adquiriu esta virtude com perfeição é que a alma já
não se volta para
nenhuma imagem vergonhosa durante o sonho. Pois, ainda
que este movimento não
seja visto como um pecado, ele é considerado um
sinal de que a alma
ainda está enferma e não se libertou das paixões.
[6,11] Eis porque
devemos crer que as representações vergonhosas que nos
sobrevêm durante o
sonho são provas de nossa negligência passada e de nossa
enfermidade: a doença
oculta nas profundezas da alma se manifesta num
corrimento favorecido
pelo sonho.
[6,12] É por isso que o
médico de nossas almas colocou o remédio nas
mesmas profundezas da
alma, aonde se encontram, como ele bem o sabia, as
causas da enfermidade:
“Aquele que olhar uma mulher para desejá-la,
cometeu adultério com
ela em seu coração310”. Ao falar assim, ele não
condenava tanto os
olhos curiosos e lascivos, quanto a alma que, escondida
no interior, fez mau
uso dos olhos dados por Deus para o bem. É por isso que
o Sábio dos Provérbios
não disse: “Vigie seus olhos”, mas “Vigie seu
coração311”, impondo o
remédio àquele que se serve dos olhos ao bel prazer.
[6,13] Eis, portanto, a
primeira precaução que deve tomar nosso coração [o
309 Filipenses II,I 20.
310
Mateus V, 28.
311
Provérbios IV, 23.
primeiro cuidado com
nossa purificação]: quando, pela malícia do diabo, se
introduzir em nosso
pensamento a lembrança de uma mulher, seja da mãe, da
irmã ou de uma mulher
piedosa, devemos tirá-la o quanto antes de nosso
coração, pois, se
demorarmos um pouco só, o demônio enganador e mau
precipitará o espírito
do alto abaixo, destas imagens aos pensamentos funestos
e vergonhosos. É por
isso que Deus deu-nos no princípio o mandamento de
tomar cuidado com a
cabeça da serpente312, ou seja, ao surgimento dos maus
pensamentos, por meio
dos quais o diabo procura escorregar para dentro de
nossas almas. Senão,
uma vez que a cabeça penetrou, ou seja, o primeiro
assalto do pensamento,
acabamos por acolher o resto do corpo da serpente, a
saber, o consentimento
ao prazer, e a partir daí o espírito será obrigado a fazer
o que não lhe é
permitido. É preciso, ao contrário, dar morte “desde a manhã,
como está escrito, a
todos os pecadores que se erguem da terra313”, ou seja,
discernir à luz da
ciência e exterminar da terra de nosso coração os
pensamentos que só
conduzem ao pecado, conforme o ensinamento do
Senhor314. E, enquanto
ainda são pequenas, é preciso exterminar as crias da
Babilônia, quero dizer
os pensamentos perversos, e destroçá-las contra o
rochedo315 que é
Cristo. Pois, se com nosso consentimento, elas chegarem a
crescer, só as
dominaremos à custa de muitos gemidos e penas.
[6,19] Além dessas
palavras da divina Escritura, podemos também mencionar
as palavras dos santos
Padres. São Basílio, bispo de Cesaréia e da Capadócia,
disse um dia: “Eu nunca
conheci mulher, e, no entanto, não sou virgem316”.
Ele sabia muito bem que
o dom da castidade não consiste tanto em se privar
de mulher, como em
guardar a pureza e a castidade da alma, o que
normalmente se realiza
pelo temor a Deus.
[6,18] Os Padres também
disseram o seguinte: Não podemos adquirir com
perfeição a virtude da
pureza sem antes adquirir a verdadeira humildade em
nosso coração Tampouco
receberemos a verdadeira ciência enquanto
312
Gênesis III, 15.
313 Salmo C, 8.
314
Cf. Mateus XV, 19.
315
Cf. Salmo CXXXVI, 9.
316
Esta citação não se encontra tal e qual nas
obras de são Basílio. Encontramos algo
próximo (“Eu escapei ao
ato da fornicação, mas manchei minha virgindade nos pensamentos
de meu coração”) na
Carta XVII, 4; porém, esta carta parece não ser de são Basílio, mas de são
Nilo.
ocultarmos a paixão da
prostituição nas profundezas da alma.
[6,16] E para
mostrarmos também pelo testemunho do Apóstolo a
recompensa da
castidade, terminaremos citando uma única sentença:
“Busquem a paz com
todos e a santidade, sem as quais ninguém verá ao
Senhor317”. Que se
trata da castidade, a seqüência o mostra: “Que ninguém
seja impudico ou
profanador como Esaú318”. E quanto mais o avanço da
santidade é celeste e
angélico, tanto mais ela é vítima de ataques cada vez
mais violentos dos
adversários. É por isso que devemos nos aplicar não
somente à continência
do corpo, mas também à contrição do coração e às
penitências [orações]
freqüentes com gemidos, a fim de que, pelo orvalho da
presença do Espírito
Santo, possamos extinguir a fornalha da nossa carne, que
o rei da Babilônia
atiça a cada dia com as tochas da concupiscência319
.
[6,23] Mas acima de
tudo, a grande arma que está à nossa disposição para o
combate, é a vigília
com Deus. Pois, assim com a vigilância do dia prepara a
santidade da noite,
também a vigília noturna com Deus prepara a alma para a
pureza durante o dia.
Da avareza
3. [7,1] Nosso terceiro
combate é contra o espírito da avareza. Ele é
manifestamente estranho
à nossa natureza e, num monge, ele tem sua origem
na falta de fé. De
fato, os vícios que excitam as demais paixões, vale dizer, a
cólera e a
concupiscência, parecem ter seus princípios no corpo, eles são de
certa forma inatos e
começam já no nascimento; é por isso que é preciso
muito tempo para
vencê-los.
[7,2] A doença da
avareza, que ao contrário provém do exterior, pode ser
evitada com mais
facilidade, se dermos provas de preocupação, sobriedade e
vigilância. Mas, se a
negligenciarmos, ela se tornará mais perigosa do que as
outras paixões e mais
difícil de ser rejeitada, pois ela é “a raiz de todos os
males”, conforme o
Apóstolo320
.
317
Hebreus XII, 14.
318
Hebreus XII, 16.
319
Cf. Daniel III, 19.49 ss.
320
Cf. 1 Timóteo VI, 10.
[7,3] Não vemos, com
efeito, os movimentos naturais do corpo, não apenas
em crianças que ainda
não possuem o discernimento do bem e do mal, mas
até nas menores que
sequer desmamaram? Sem ter nelas o menor traço de
voluptuosidade, elas
entretanto mostram em sua carne estes movimentos
naturais. Da mesma
forma, podemos constatar nas crianças o aguilhão da
cólera quando as vemos
irritadas contra alguém que lhes fez mal. Digo isto,
não para acusar a
natureza como causa do pecado, que Deus não permita!,
mas para mostrar que a
cólera e a concupiscência, mesmo estreitamente
unidas ao homem pelo
Criador para seu bem, podem, por negligência,
transformar de certa
maneira os movimentos naturais do corpo em atos contra
a natureza. Com efeito,
o movimento do corpo foi dado por Deus para a
procriação e o
prolongamento da raça, não para a prostituição. A excitação da
cólera também pode ser
salutar, para a dirigirmos contra os vícios e não para
que fiquemos furiosos
com nosso irmãos.
[7,4] Não, é claro, que
a natureza seja má e que possamos responsabilizar o
Criador; da mesma
forma, se dermos um pedaço de ferro a alguém para um
uso necessário e útil,
ele pode também usá-lo para cometer um crime.
[7,5] Dizemos tudo isso
para mostrar que a paixão da avareza não extrai seu
princípio dos elementos
naturais, mas apenas da vontade má e corrompida.
[7,7] Com efeito, esta
doença, quando encontra a alma morna e com pouca fé
no início da renúncia,
lhe sugere motivos justos e aparentemente razoáveis
para que a pessoa
guarde um pouco daquilo que ela possui. A avareza
apresenta ao espírito
do monge uma velhice longa e as enfermidades do
corpo, alegando que o
que é dado pelo mosteiro não é suficiente, não digo aos
enfermos, mas até aos
que gozam de boa saúde, que ninguém ali se preocupa
muito com os doentes,
que eles chegam a ser abandonados, e que se não
tiverem um pouco de
ouro guardado, morrerão de miséria. Finalmente, ela
sugere ao monge que ele
não conseguirá permanecer por muito tempo ainda
no mosteiro, pela carga
das observâncias e o rigor do superior. Quando ela
logrou desorientar o
espírito com estes pensamentos para que ele guarde ao
menos alguns centavos,
ela ainda persuade o monge a aprender, sem que o
abade saiba, algum
trabalho com o qual ele possa aumentar suas economias.
Assim ela desvia o
infeliz para esperanças incertas, sugerindo-lhe os ganhos
com seu trabalho, o
repouso e a despreocupação que ele tirará disso. Entregue
por completo à idéia de
ganhar, ele não vê nada contra; nem a loucura furiosa
que o tomará se lhe
acontecer uma perda, nem as trevas da tristeza caso ele se
veja privado dos ganhos
com os quais contava. Para ele, o ouro tomou o lugar
de Deus, assim como,
para outros, o ventre321. Assim, o bem-aventurado
Apóstolo, sabendo
disto, chamou a esta doença não somente de “raiz de todos
os males322”, mas de
“idolatria323”. Vemos com isto a que ponto de malícia
esta doença arrasta o
homem, até atirá-lo na idolatria.
[7,8] Depois que o
avaro desviou seu intelecto do amor de Deus, ele começa a
adorar as imagens dos
homens gravadas no ouro. Cego por esses pensamentos
e progredindo no mal,
ele já não consegue se manter obediente mas se irrita,
se indigna e resmunga
por qualquer trabalho,opõe-se a ele e, não tendo mais
nenhum respeito por
ninguém, é arrastado ao precipício como um cavalo
bravo. Descontente com
a alimentação costumeira, ele protesta que não
poderá mais suportar
isto, que Deus não está apenas ali, que sua salvação não
está ligada apenas
àquele lugar e que ele vai se perder se não deixar o
mosteiro.
[7,9] Tendo dinheiro
reservado para apoiar sua opinião corrompida, ele é
como que levado por
suas asas e começa a ruminar sua despedida do
mosteiro. A partir daí
ele responde com insolência e azedume a todas as
ordens que lhe são
dadas e, comportando-se como um hóspede ou um
estrangeiro,
negligencia e despreza tudo o que, no mosteiro, precisa ser
retificado, e condena
tudo o que é feito. Depois ele começa a encontrar razões
para se irritar ou se
entristecer, a fim de não dar a impressão de deixar o
mosteiro levianamente e
sem razão. E ele pode fazer com que, por meio de
enganações, cochichos e
vãos propósitos, algum outro o acompanhe em sua
saída, para que ele
consiga ao menos um cúmplice em sua queda.
[7,10] Assim inflamado
pelo fogo de suas próprias riquezas, o avaro já não
poderá estar em paz no
mosteiro e viver sob uma regra. Então o demônio,
qual um lobo, o leva da
comunidade, o separa da tropa e o agarra como uma
presa fácil de devorar.
Ele o estimula a negligenciar os trabalhos que se
realizam em horários
fixos no mosteiro e a fazê-los zelosamente em sua
321 Cf. Filipenses III,
19.
322
1 Timóteo VI, 10.
323
Colossenses III, 5.
própria cela noite e
dia. Ele não o deixa mais observar as orações habituais,
nem a medida dos
jejuns, nem a regra das vigílias, tendo-o laçado com a
paixão da avareza, e o
persuade a empenhar-se no trabalho manual.
[7,14] Esta doença
apresenta três formas que as divinas Escrituras e os
ensinamentos dos Padres
reprovam da mesma maneira. A primeira leva os
infelizes a adquirir e
juntar riquezas que antes não possuíam neste mundo. A
segunda traz o
arrependimento pelas riquezas às quais se renunciou e incita a
recuperar aquilo que
foi oferecido a Deus. A terceira engaja o monge desde o
início na falta de fé e
de ardor, e o impede de se despojar completamente dos
bens deste mundo,
fazendo-o temer o despojamento e duvidar da providência
de Deus. Ele se mostra
assim infiel às promessas que fez ao renunciar ao
mundo. Encontramos
exemplos de condenação destas três formas da avareza
nas Sagradas
Escrituras. Giezi, pretendendo adquirir riquezas que não possuía
antes, Foi privado do
dom da profecia que seu mestre pretendia deixar-lhe em
herança, e, em lugar da
bênção, herdou uma lepra eterna por causa da
maldição do profeta324.
Judas, que quis reaver os bens aos quais havia
renunciado ao seguir
Cristo, não apenas chegou a trair a Cristo e perder sua
posição de apóstolo,
mas ainda pôs fim à sua vida física por uma morte
violenta325. Ananias e
Safira, por terem guardado uma parte dos seus bens,
forma, foram punidos de
morte pelas palavras do Apóstolo326
.
[7,15] O grande Moisés
dá esta advertência no Deuteronômio, no sentido
espiritual, para
aqueles que querem renunciar ao mundo, mas permanecem
ligados às coisas
terrestres pelo medo que lhes causa a falta de fé: “Se o
homem é covarde e tem o
coração medroso, é melhor que ele não parta para o
combate; que ele
retorne à sua casa, para não assustar o coração dos seus
irmãos.327” O que pode
haver de mais claro do que este testemunho? Não
aprendemos com estas
palavras que aqueles que renunciam ao mundo devem
fazê-lo por completo e
apresentar-se assim para o combate, para não desviar
os outros da perfeição
evangélica, inspirando-lhes medo com um começo
fraco e corrupto?
324 Cf. 2 Reis V, 27.
325
Cf. Mateus XXVII, 5.
326
Cf. Atos V, 5 e 10.
327
Deuteronômio XX, 8.
[7,16] Bem que está
dito na divina Escritura que “é melhor dar do que
receber328”, mas o
avaro entende erradamente a frase e distorce o texto com
suas manobras e a
cobiça de sua avareza, alterando o sentido das palavras e
do ensinamento do
Senhor, que diz: “Se você quiser ser perfeito, vá, venda
tudo o que possui e dê
aos pobres, e você terá um tesouro nos céus; depois,
siga-me329”. Eles acham
preferível usufruir de suas riquezas e dar o supérfluo
aos pobres. Estes
homens deveriam saber que eles ainda não renunciaram ao
mundo nem abraçaram a
perfeição monástica enquanto ainda ficarem
vermelhos em assumir o
despojamento do Apóstolo e de ajudar os indigentes
com o trabalho das suas
mãos. Se eles quiserem preencher realmente sua
confissão monástica e,
tendo distribuído toda sua riqueza anterior, glorificar[1]se
com o Apóstolo “na fome e na sede, no frio e na nudez330”, eles
conduzirão, com Paulo,
o “bom combate331”.
[7,17] Com efeito, se o
mesmo Apóstolo achasse necessário para a perfeição
manter seus antigos
bens, ele não teria desdenhado de sua dignidade, ele que
era de nascimento nobre
e cidadão romano332. E os que, em Jerusalém, eram
“possuidores de mansões
e campos e que deixavam aos pés dos apóstolos o
dinheiro da venda333”,
não teriam agido assim se soubessem que os apóstolos
julgavam melhor
subsistir de seus próprios recursos do que com o trabalho de
suas mãos e as doações
dos cidadãos. O Apóstolo ensina isto claramente
quando escreve aos
romanos: “Agora eu parto para Jerusalém para servir aos
santos (de fato, ele
pedira, na Macedônia e na Acádia, que se fizesse uma
coleta para os santos
de Jerusalém, ou seja, para os pobres). Ele lhes pediu e
eles são seus
devedores.334”
O próprio Apóstolo,
muitas vezes encarcerado e cativo ou entravado pelos
incômodos da viagem, e,
por causa disto, incapaz de prover por suas próprias
mãos sua subsistência,
como estava acostumado, declarou haver recebido esta
subsistência dos irmãos
vindos da Macedônia: “Pois, disse ele, o que me
328
Atos XX, 35.
329
Mateus XIX, 21.
330
2 Coríntios XI, 27.
331
2 Timóteo IV, 7.
332
Cf. Atos XXII, 25-28.
333 Atos IV, 34-35.
334
Romanos XV, 25-27.
faltou foi suprido
pelos irmãos vindos da Macedônia335”; e ele escreveu aos
Filipenses: “Também
vocês sabem, Filipenses, que, quando eu parto da
Macedônia, nenhuma
igreja me amparou em termos de contribuição
pecuniária, salvo a de
vocês; pois quando eu estava em Tessalônica, por duas
vezes vocês me enviaram
aquilo de que eu estava necessitado336”. Teriam sido
estes cristãos, na
opinião dos avaros, mais felizes do que o Apóstolo, porque
supriram suas
necessidades com seus próprios bens? Ninguém será louco de
dizê-lo.
[7,18] É por isso que,
se quisermos seguir o preceito evangélico e imitar toda
a Igreja fundada desde
a origem sobre os apóstolos, não devemos nos fiar em
nossas próprias
opiniões nem interpretar mal aquilo que foi expresso.
Rejeitando a
perspectiva morna e a falta de fé, sigamos exatamente o
Evangelho. Assim
poderemos caminhar sobre as pegadas dos Padres sem
jamais nos distanciar
da disciplina do mosteiro, e renunciar ao mundo com
toda a verdade.
[7,19] É bom lembrar
aqui as palavras de um santo. Diz-se que são Basílio,
bispo de Cesaréia,
dirigiu-se a um senador que havia renunciado ao mundo
sem fervor e reservado
para si um pouco de suas posses nestes termos: “Você
perdeu o senador e não
adquiriu o monge337”. É preciso, assim, que, com o
maior cuidado,
expulsemos de nossa alma a raiz de todos os males, vale dizer,
a avareza, sabendo que,
se a raiz permanecer, os ramos crescerão facilmente.
[7,29] É difícil
adquirir esta virtude sem viver numa comunidade, pois aí
estaremos livres de
toda a preocupação em relação às coisas necessárias.
[7,30] Lembrando-nos do
castigo de Ananias e Safira338, devemos temer
guardar para nós seja o
que for que possuímos. Temendo o exemplo de Gieze
que, por sua avareza,
foi punido com a lepra eterna339, evitemos juntar
riquezas que não
tínhamos antes neste mundo. Enfim, pensando na morte de
335 2 Coríntios XI, 9.
336 Filipenses IV,
15-16.
337
Esta sentença, com a passagem das Instituições
que a contém, é apresentada nas
Sentenças dos Padres do
deserto, Cassiano 7.
338
Cf. Atos V, 5 ss.
339
Cf. 2 Reis V, 27.
Judas por
enforcamento340, vigiemos para jamais tentarmos recuperar algo a
que já havíamos
renunciado. E acima de tudo, mantendo sempre nos olhos a
perspectiva da morte,
cuidemos para que nosso Senhor não venha na hora
menos esperada e não
encontre nossa consciência contaminada pela avareza.
Ele então poderá nos
dirigir as palavras ditas ao rico no Evangelho:
“Insensato, nesta mesma
noite sua alma será levada; aquilo que você reservou
para si, de que lhe
servirá agora?341”
Da cólera
4. [8,1] Nosso quarto
combate é contra o espírito da cólera e é preciso que,
com a ajuda de Deus,
extirpemos das profundezas de nossa alma este veneno
mortal. Pois, enquanto
ele se mantiver em nosso coração e cegar os olhos do
coração com
perturbações tenebrosas, não seremos capazes de adquirir o
discernimento das
coisas convenientes, nem encontrar a compreensão da
ciência espiritual, nem
possuir a perfeição do bom conselho, nem participar
da vida verdadeira, e
nosso intelecto não será capaz de contemplar a
verdadeira luz divina.
De fato, foi dito: “Meu olho foi perturbado pela
cólera342”. Não será
possível participarmos da sabedoria divina, ainda que
sejamos reputados
sábios segundo a opinião de todos, pois está escrito: “A
cólera repousa no seio
dos insensatos343”. Nem poderemos adquirir os
salutares conselhos do
discernimento, mesmo que os homens nos julguem
prudentes pois também
está escrito: “A cólera do homem não cumpre com a
justiça de Deus344”. E
tampouco poderemos adquirir a moderação e a
gravidade tão estimadas
dos homens, pois está escrito: “O homem colérico é
indecente345”.
[8,5] Portanto, aquele
que pretende alcançar a perfeição e que deseja levar
adiante o combate
conforme as regras, deve ser alheio a toda cólera e todo
furor e escutar a
recomendação do vaso de eleição: “Que toda cólera, disse
340
Cf. Mateus XXVII, 5.
341
Lucas XII, 20.
342
Salmo VI, 8.
343
Eclesiastes VII, 9.
344
Tiago I, 20.
345
Provérbios XI, 25.
ele, fúria, grito e
blasfêmia sejam afastados de vocês, bem como toda
malícia346”. Quando ele
diz “toda”, ele não deixa nenhum pretexto de cólera
que pudesse ser
necessária ou razoável. Assim, quem quiser corrigir o irmão
que pecou ou lhe
infligir um castigo, deve tentar por todos os meios
permanecer
imperturbável, para que não lhe aconteça que, pretendendo curar
o outro, não contraia
ele próprio a doença, e que dele não se diga, conforme o
Evangelho: “Médico,
cure a si mesmo347”. E ainda: “Porque você critica a
palha no olho do seu
irmão e não percebe a trave no seu próprio olho?348”
[8,6] De fato, qualquer
que seja a causa, o movimento da cólera, em sua
ebulição, cega os olhos
da alma e impede de contemplar o sol da justiça.
Quem coloca sobre os
olhos folhas de ouro ou de chumbo fica igualmente
privado da visão, e o
valor do metal não tem nenhuma relação com a
cegueira. Da mesma
forma, qualquer que seja a causa, razoável ou não,
quando a cólera se
inflama, ela obscurece a vista.
[8,7] Nós só usamos a
cólera em conformidade com a natureza quando nos
insurgimos contra os
pensamentos passionais ou voluptuosos.
[8,8] É o que o Profeta
nos ensina, ao dizer: “Encolerizem-se e não pequem
mais349”.
[8,9] Isto significa:
“Encolerizem-se contra as suas próprias paixões e contra
os pensamentos
perversos, e não pequem cumprindo as suas sugestões.” Este
sentido aparece com
mais clareza ainda no verso seguinte: “Aquilo que vocês
dizem em seus corações,
levem compungidos ao leito350”, ou seja: quando
sobrevierem pensamentos
perversos em seu coração, depois de rejeitá-los
encolerizando-se contra
eles, você encontrará uma grande paz, como num
leito de repouso; sinta
então a compunção pela penitência. O bem-aventurado
apóstolo Paulo concorda
com isto quando, com testemunho neste versículo,
diz: “Que o sol não se
ponha sobre sua cólera; não abram a porta ao diabo.351”
346
Efésios IV, 31.
347
Lucas IV, 23.
348
Mateus VII, 3-5.
349
Salmo IV, 5.
350
Salmo IV, 5.
351
Efésios IV, 26.
Dito de outro modo: não
force o sol de justiça, Cristo, a se deitar sobre o seu
coração irritando-o por
sua conivência com os maus pensamentos, para que
não lhe aconteça que,
com sua partida, o diabo encontre um acesso a você.
[8,10] É deste sol que
Deus fala pela boca do Profeta: “Para aqueles que
temem meu nome
erguer-se-á o sol de justiça, que cura com seus raios352”. Se
levarmos ao pé da letra
o versículo do Apóstolo, não poderíamos, de fato,
guardar a cólera até o
por do sol.
[8,11] Que diremos
então daqueles que, pela selvageria e a loucura da paixão,
não contentes em
conservar sua raiva até o por do sol ainda a prolongam por
dias a fio, abstendo-se
de falar com os outros? Eles não exprimem sua cólera
em palavras, mas
através de seu mutismo para com os demais, eles aumentam
o veneno do rancor,
para sua própria perda.
[8,12] Eles ignoram que
é preciso abster-se da cólera, não apenas em ato, mas
também em pensamento,
para evitar que o intelecto, cego pelas trevas do
rancor, perca a luz do
conhecimento e do discernimento e seja privado da
presença do Espírito
Santo.
[8,13] É para isto, com
efeito, que o Senhor, no Evangelho, ordena deixar a
oferenda perto do altar
para ir reconciliar-se com seu irmão353. Senão, é
impossível que a
oferenda seja aceita, se estivermos presa da cólera e do
rancor. Por outro lado,
o Apóstolo ordena rezar sem cessar354, e em toda parte
erguer as mãos puras,
sem cólera nem [maus] pensamentos355; esta é uma
lição para nós.
Resta-nos, assim, seja não mais orar – mas então pecaríamos
contra o mandamento do
Apóstolo – seja nos apressarmos em seguir este
mandamento e cessar
imediatamente com a cólera e o rancor.
[8,14] Acontece muitas
vezes desdenharmos dos irmãos sofredores ou
perturbados, dizendo
que sua tristeza não foi causada por nós. É por isso que
o médico de almas,
querendo extirpar do coração até as raízes os pretextos da
alma, nos ordena deixar
a oferenda e irmos nos reconciliar, não somente se
352
Malaquias IV, 2.
353
Cf. Mateus V, 23-24.
354
Cf. 1 Tessalonicenses V. 17.
355
Cf. 1 Timóteo II, 8.
fomos nós os ofendidos
por um irmão, seja que tenhamos nós o ofendido,
com ou sem razão.
Primeiro devemos remediar a situação com desculpas,
para em seguida
fazermos nossa oferenda.
[8,15] Mas não
precisamos nos deter por mais tempo nos preceitos
evangélicos, uma vez
que a própria lei antiga, que parece ser menos rigorosa,
nos ensina isto quando
diz: “Não odeie seu irmão em seu coração356”, e
também: “Os caminhos
daquele que guarda rancor levam à morte357”. A lei
proíbe não apenas o
ato, mas o pensamento. É por isso que aqueles que
seguem as leis divinas
lutam com todas as suas forças contra o espírito de
cólera e contra esta
doença que existe dentro de nós.
[8,16] Que aqueles que
se encolerizam contra seus irmãos não busquem a
solidão e o isolamento,
pensando que assim ninguém mais os levará à cólera,
e que a virtude da
paciência poderá ser mais facilmente adquirida na solidão.
É por orgulho, e por
não querermos acusar a nós mesmos, nem reconhecer em
nosso descuido a causa
da perturbação, que desejamos nos separar dos
irmãos. Mas enquanto
imputarmos aos outros as causas de nossa fraqueza,
será impossível
conseguir a paciência.
[8,17] O essencial de
nosso progresso e de nossa paz não pode provir da
paciência do próximo
para conosco, mas de nossa longanimidade para com o
próximo.
[8,18] Se buscarmos o
deserto e a solidão para fugirmos ao combate pela
paciência, todos os
vícios que carregamos conosco sem havê-los corrigido
permanecerão
escondidos, mas não suprimidos. E, com efeito, para quem não
se libertou das
paixões, a solidão e o retiro podem não apenas conservá-las,
mas aumentá-las, a tal
ponto que ele se acaba por não saber de qual paixão
está sendo vítima. A
solidão, ao contrário, lhe sugere a ilusão da virtude e o
persuade de que ele
adquiriu a paciência e a humildade, uma vez que não
existe ninguém ali para
provocá-lo e testá-lo. Mas basta que surja uma
circunstância que o
sacuda e o excite, e na mesma hora as paixões que se
encontram nele e que
estavam até então ocultas, como cavalos sem freio que,
saindo da cocheira após
um período de repouso e inatividade, arrastam o
356
Levítico XIX, 17.
357 Provérbios XII, 28.
condutor com mais
ímpeto e ferocidade. De fato, as paixões são mais
excitadas em nós quando
não somos testados no meio dos homens. E
perdemos esta sombra de
paciência e longanimidade que fingimos possuir
enquanto não nos
misturamos aos irmãos, pelo desleixo causado pela falta de
exercício e pela
solidão.
[8,19] Assim como as
mais venenosas bestas selvagens, em repouso no
deserto e em suas
covas, mostram toda a sua fúria contra qualquer um que se
aproxime, também os
homens que são presa das paixões, que são calmos não
por disposição mas pela
necessidade do deserto. Despejam seu veneno cada
vez que colocam a mão
em alguém que se aproxime e os provoque. É por isso
que aqueles que buscam
a perfeição da doçura devem tomar todo o cuidado
para não se encolerizar
contra os homens, mas também para não se irritar com
os animais nem com as
coisas. Eu me lembro, de fato, que, quando vivia no
deserto, eu me irritava
contra uma pena de escrever que eu considerasse
muito grossa ou muito
fina, contra um pedaço de madeira que eu não
conseguia cortar com a
facilidade imaginada, ou contra a pederneira quando
eu estava com pressa de
acender o fogo e a centelha custava a pegar. Assim
eu descarregava a
cólera contra as coisas sensíveis.
[8,20] Assim, se
quisermos obter a beatitude do Senhor, devemos, como foi
dito, evitar a cólera
não apenas em ato, mas também em pensamento. Com
efeito, não é tão útil
dominarmos nossa língua para não proferir palavras de
furor, quanto
purificarmos o coração do rancor e não acalentar em si maus
pensamentos contra o
irmão. Pois o ensinamento evangélico ordena evitar
antes as raízes dos
pecados do que seus frutos. Se a raiz da cólera for
extirpada do coração,
nem o ódio nem a inveja conseguirão se traduzir em
atos. Com efeito,
aquele que odeia seu próximo é chamado de “homicida”358
,
porque ele o condena à
morte pela disposição da raiva que existe em seu
espírito. Os homens não
o vêem verter sangue com seu gládio, mas Deus vê
que ele o mata em
espírito pela raiva que guarda em si, e o Senhor distribui a
cada um as coroas e os
castigos não somente por suas ações, mas também
pelos pensamentos e os
desejos, como diz o Profeta: “Eis que vim para reunir
suas obras e seus
pensamentos359”. E o Apóstolo diz também: “Seus
pensamentos ora os
acusarão, ora os defenderão, no dia em que Deus julgar
358
Cf. 1 João III, 15.
359
Isaías LXVI, 18.
os segredos dos
homens360”.
[8,12] O próprio Mestre
nos ensina a renunciar a toda cólera quando diz nos
Evangelhos: “Todo
aquele que odeia seu irmão deverá ir a julgamento361”. É
de fato, o texto que
fornecem os exemplos mais exatos. Segundo o contexto,
o inciso “sem causa”
parece ter sido acrescentado. Com efeito, o desígnio do
Senhor é que evitemos,
de todas as maneiras, a raiz e a centelha da cólera,
sem guardar em nós o
menor pretexto de irritação, para que, por nos
enfurecermos por um bom
motivo, não nos aconteça cairmos a seguir numa
cólera furiosa e
irracional. O remédio perfeito contra esta doença é o seguinte:
devemos acreditar
firmemente que jamais é permitido enfurecer-se, seja por
coisas justas, seja por
coisas injustas. Como o espírito da cólera obscurece o
espírito, nem a luz do
discernimento, nem a solidez do conselho justo, nem o
sentido de justiça
permanecerão em nós. Será impossível que nossa alma seja
o templo do Espírito
Santo se o espírito da cólera, tendo obscurecido nosso
espírito, se apodere de
nós. Enfim, a cima de tudo, é preciso que nos
guardemos da cólera
tendo sempre diante dos olhos a incerteza da hora da
morte. E saibamos
também que nem a castidade, nem a renúncia a todos os
bens, nem os jejuns e
as vigílias nos servirão se nos apresentarmos ao Juízo
cheios de cólera e
rancor.
Da tristeza
5. [9,1] Nosso quinto
combate é contra o espírito da tristeza que rouba a luz
da contemplação
espiritual da alma e a impede de cumprir as boas obras.
Com efeito, quando este
espírito mau se apodera da alma ele a obscurece
inteiramente, não a
deixa mais fazer suas orações com fervor nem se dedicar
frutiferamente às
santas leituras. Ele não permite ao homem ser doce e
conciliador com seus
irmãos; ele lhe inspira raiva a todas as obras que se deve
praticar e à própria
vida que se abraçou. A tristeza perturba todos os desejos
saudáveis da alma e
dissolve seu vigor e sua constância, tornando-a como que
mole e paralisada, até
prendê-la finalmente ao pensamento do desespero.
360
Romanos II, 15-16.
361
Mateus V, 22.
[9,2] É por isso que,
se quisermos sustentar o combate espiritual e vencer com
a ajuda de Deus os
espíritos de malícia, devemos guardar com o maior
cuidado nosso coração
do espírito da tristeza, pois, assim como a traça nas
roupas ou o cupim na
madeira, a tristeza devora a alma do homem, quando o
persuade a evitar os
bons encontros e não permite receber o conselho dos
melhores amigos, nem
lhes dar uma resposta amável e pacífica. Ela se
apodera da alma de
todos os lados e a enche de amargura e de acídia. Enfim,
ela instiga a fugir dos
homens como se fossem eles os responsáveis pela
perturbação em que se
encontra. E ela não permite à alma reconhecer que sua
enfermidade não provém
de fora, mas nasce no seu interior, coisa que, aliás,
aparece quando as
tentações, surgindo inopinadamente pela prática, a fazem
vir à luz. De fato,
jamais um homem é prejudicado por outro, se não possuir
em si mesmo as causas
das paixões.
[9,7] Também Deus,
criador e médico das almas, o único que conhece
exatamente as feridas
da alma, não nos ordena renunciar à freqüentação dos
outros, mas a extirpar
as causas do mal em nós mesmos. Ele sabe que a saúde
da alma não é obtida
separando-nos uns dos outros, mas vivendo e nos
exercitando junto a
homens virtuosos. Quando abandonamos os irmãos por
supostos bons
pretextos, não suprimimos as ocasiões de tristeza, mas apenas
as alteramos, pois o
mal está em nós e surgirá por outras razões.
[9,8] É por isso que
todo o nosso combate deve ser contra as paixões que
estão em nós. Uma vez
que sejam expulsas de nosso coração com a graça e a
ajuda de Deus,
viveremos com tranqüilidade, já não digo entre os homens,
mas mesmo entre os
animais selvagens, como diz o bem-aventurado Jó: “Os
animais selvagens
viverão em paz com você”362
.
[9,9] É preciso então
combater primeiro contra o espírito da tristeza que lança
a alma no desespero, a
fim de tirá-lo de nossa alma. Foi este espírito, de fato,
que impediu Caim de se
arrepender após o assassinato de seu irmão363, e
também Judas, após ter
traído o Mestre. Só podemos manter a tristeza trazida
pelo arrependimento dos
pecados que cometemos, mas que é acompanhada da
boa esperança. Da qual
diz o Apóstolo: “A tristeza conforme a Deus causa
362
Jó V, 23.
363
Cf. Gênesis IX, 4-16.
uma penitência
duradoura para a salvação364”. Com efeito, a tristeza conforme
a Deus, que nutre a
alma com a esperança da penitência, é mesclada de
alegria. É por isso que
ela torna o homem cheio de ardor para submeter-se às
boas obras, afável,
humilde365, doce, esquecendo-se das injúrias, paciente para
suportar todas as penas
e aflições, tudo o que vem de Deus. Desta tristeza
enfim nascem no homem
os frutos do Espírito Santo, a saber, “a alegria, a
caridade, a paz, a
longanimidade, a bondade, a fé, a temperança366”. Da outra
tristeza, ao contrário,
reconhecemos os maus frutos, que são a acídia, a
impaciência, a cólera,
a raiva, a contrariedade, o desencorajamento, a
negligência na oração.
[9,12] Assim, devemos
nos afastar desta tristeza assim como fazemos com a
prostituição, a
avareza, a cólera e as demais paixões. Ela é curada pela prece,
pela esperança em Deus,
pela meditação nas palavras divinas e pela
freqüentação dos homens
piedosos.
Da acídia
6. [10,1] Nosso sexto
combate será contra o espírito da acídia que caminha e
trabalha junto com o
espírito da tristeza. Este demônio terrível e opressor está
sempre em guerra contra
os monges.
[10,2] É ele que ataca
o monge na sexta hora, tornando-o lânguido e
entorpecido, fazendo-o
sentir aversão pelo lugar em que vive, pelos irmãos
que vivem com ele,
pelas ocupações e até pela leitura das divinas Escrituras.
Ele lhe sugere que mude
de lugar, pensando que, se não partir para outras
paragens, estará
perdendo seu trabalho e seu tempo.
[10,3] Em primeiro
lugar, por volta da sexta hora, ele o faz sentir fome, como
se tivesse passado três
dias sem comer, percorrido um longo caminho ou
cumprido alguma pesada
tarefa. Então ele lhe sugere o pensamento de que
esta enfermidade poderá
ser tratada se ele sair continuamente a ver os irmãos,
sob pretexto de
benefício espiritual ou para visitar os enfermos. Se não
364
2 Coríntios VII, 10.
365
Existe aqui uma lacuna no texto da P.G. 28,
897D.
366
Gálatas V, 22-23.
consegue fazer com que
o monge caia em suas armadilhas, este demônio o
mergulha num profundo
sono, tornando-se assim mais forte e mais poderoso
contra ele, e então ele
só poderá ser expulso pela prece, a fuga da tagarelice, a
meditação sobre as
palavras divinas e a paciência nas provações.
[10,6] Com efeito,
quando não o encontra munido destas armas, ele toma as
rédeas ao monge,
tornando-o instável, errante, negligente e ocioso, fazendo-o
circular de mosteiro em
mosteiro sem se preocupar com outra coisa do que
encontrar comida e
bebida. Pois o espírito do monge que é presa da acídia não
imagina outra coisa do
que distrações deste gênero; e, a partir daí, a acídia o
prende às coisas do
mundo e pouco a pouco o atira às suas ocupações
nocivas, até que ele
decaia totalmente de sua profissão monástica.
[10,7-8] O divino
Apóstolo, sabendo e desejando, como bom médico,
arrancar de nós esta
doença extremamente grave, mostra-nos em primeiro
lugar as causas das
quais ela decorre: “Nós lhes ordenamos, irmãos, em nome
de nosso Senhor Jesus
Cristo, que vocês se separem de qualquer irmão que
viva na desordem e não
na tradição recebida de nós. E vocês sabem, com
efeito, como é preciso
nos imitar, porque nunca vivemos ociosamente entre
vocês, jamais comemos
de graça o pão de quem quer que fosse; ao contrário,
trabalhamos noite e
dia, penando até o esgotamento, para não sermos um peso
para ninguém.”
[10,10] “Não que não
possuíssemos este direito, mas quisemos nos tornar um
exemplo vivo para
vocês.”
[10,11] “Da mesma
forma, enquanto estivemos entre vocês, nós lhes
prescrevemos que, se
alguém não trabalhar, que também não coma! Ora,
ficamos sabendo que
entre vocês alguns vivem ociosamente, sem nada fazer
mas sempre parecendo
atarefados. A estes, nós pedimos e exortamos em Jesus
Cristo a que trabalhem
em calma para comer um pão que seja seu.367”
368Vejamos como o
Apóstolo nos mostra com sabedoria as causas da acídia.
De fato, ele chama de
rebeldes aos que não trabalham; com uma única
palavra, ele desvela
toda a grande malícia. Pois quem é rebelde não teme a
367 2 Tessalonicenses
III, 6-12.
368 Aqui retoma o texto
após a lacuna em P.G. 28,897D.
Deus, é levado por suas
próprias palavras e está sempre inclinado às injúrias,
sendo, portanto,
incapaz de recolhimento e tornando-se escravo da acídia. O
Apóstolo ordena que nos
separemos destes, como nos afastamos de uma
moléstia pestilenta. Ao
dizer a seguir que eles não caminham “segundo a
tradição recebida de
nós”, ele indica que eles são orgulhosos, desdenhosos e
violadores das
tradições apostólicas. E, acrescenta ele, “jamais comemos de
graça o pão de quem
quer que fosse; ao contrário, trabalhamos noite e dia,
penando até o
esgotamento, para não sermos um peso para ninguém.”
[10,8] O doutor das
nações, o arauto do Evangelho, aquele que foi elevado até
o terceiro céu, aquele
que disse que o Senhor declarou que os que predicam o
Evangelho devem viver
do Evangelho, ele próprio trabalha noite e dia
penando até o
esgotamento para não se tornar um peso para ninguém. Que
faremos nós então, que
sentimos desgosto pelo trabalho e não buscamos
senão o bem estar do
corpo? Nós não recebemos nem o encargo de anunciar o Evangelho, nem o de
administrar a Igreja, mas apenas o de cuidar de nossas
almas. Depois,
mostrando claramente o prejuízo causado pelo ócio, ele
acrescenta: “sem fazer
nada e sempre parecendo atarefados”. Pois do ócio
nasce a ingerência nos
negócios alheios, daí a desordem e da desordem todos
os males. Preparando em
seguida o remédio, ele prossegue: “A estes, nos
exortamos a trabalhar
em calma para comer um pão que seja seu”. E depois
ele declara ainda mais
severamente: “Se alguém não trabalha, que também
não coma!”
[10,22] Instruídos por
estes mandamentos apostólicos, os santos Padres do
Egito decretaram que os
monges não deveriam ficar ociosos nem por um
momento, sobretudo os
jovens. Eles sabiam que pela perseverança no
trabalho se expulsa a
acídia, se ganha a subsistência e se vem em socorro dos
indigentes. Com efeito,
eles não trabalhavam apenas para suas necessidades,
mas seu trabalho lhes
dava o suficiente para amparar os estrangeiros, os
pobres e os
prisioneiros. Eles estavam persuadidos de que esta benemerência
era uma santa oferenda
agradável a Deus. E os Padres diziam o seguinte:
quem trabalha luta
contra um demônio e é atormentado por ele; mas quem é
ocioso está sujeito a
milhares de demônios.
[10,25] Por outro lado,
é bom lembrar as palavras que o abade Moisés, o mais
experiente dentre os
Padres, me disse pessoalmente. Naquela ocasião eu me
encontrava há pouco
tempo no deserto e fui tomado pela acídia. Fui procurá[1]lo
para dizer que, na véspera, eu estivera muito atormentado pela acídia e, no
fim das forças, só
consegui libertar-me dela procurando o abade Paulo. Então
o abade Moisés me
respondeu: “Na verdade, você não se libertou, mas
escravizou-se ainda
mais. Saiba então que este demônio o atacará com mais
força ainda como
desertor, a menos que você se dedique a vencê-lo pela
perseverança, a prece e
o trabalho manual.”
Da vanglória
7. [11,1-3] Nosso
sétimo combate é contra o espírito de vanglória, paixão que
se reveste de diversas
formas e que é muito sutil. Mesmo os mais experientes
não conseguem dominá-la
facilmente. De fato, os ataques das outras paixões
são mais manifestos e
podemos combatê-los com certa facilidade, pois a alma
reconhece o inimigo e o
afasta rapidamente pela réplica da oração. Mas a
malícia da vanglória,
revestindo-se de numerosas formas, como dissemos, é
difícil de combater.
Com efeito, ela se mostra em todas as ocupações, [nas
roupas, no modo de
andar], na voz, na palavra, no silêncio, na ação e na
vigília, nos jejuns, na
prece, na leitura, no recolhimento e na paciência. Em
tudo isso, ela se
esforça por ferir o soldado de Cristo.
[11,4] Aquele a quem a
vanglória não consegue enganar com a suntuosidade
das vestimentas, ela
busca tentar com um vil uniforme. Aquele a quem ela
não conseguiu abater
com as honrarias, ela tenta empurrar para o orgulho de
suportar a desonra.
Aquele a quem ela não conseguiu bajular pela arte das
palavras, ela busca
seduzir com um silêncio que se faz passar por
recolhimento. A quem
ela não conseguiu convencer de se glorificar por um
bom regime alimentar,
ela atrai com um jejum feito para ser louvado. Numa
palavra, qualquer obra,
qualquer ocupação fornece a este mau demônio uma
ocasião para atacar.
[11,14] Ademais, ele
sugere também ao monge imaginar-se nas altas patentes
clericais.
[11,6] Lembro-me de um
ancião, quando eu morava em Sceta. Dirigindo-se à
cela de um irmão para
visitá-lo, ao aproximar-se da porta, ouviu alguém
falando no interior.
Pensando tratar-se de alguma passagem da Escritura, ele
parou para escutar. Ele
então percebeu que o irmão era presa da vanglória,
que ele imaginava ser
diácono e acabava de despachar alguns catecúmenos.
Após ouvir isto, ele
bateu à porta e entrou. O irmão veio ao seu encontro,
saudou-o segundo o
costume e lhe perguntou se ele estava há muito tempo
diante da porta. O
ancião lhe respondeu calmamente: “Eu cheguei bem no
momento em que você
despachava os catecúmenos”. Diante destas palavras,
o irmão caiu aos pés do
ancião pedindo-lhe que rezasse por ele, a fim de que
fosse libertado da
ilusão.
[11,17] Lembrei-me
deste acontecimento para demonstrar a que ponto de
inconsciência este
demônio consegue levar o homem.
[11,19] Aquele que
quiser combater à perfeição e conquistar a coroa da
justiça deve se
esforçar por todos os meios para vencer esta besta multiforme,
tendo sempre em mente
as palavras de Davi: “O Senhor reduzirá a pó os
ossos dos que seduzem
os homens369”. Que ele não faça nada pelo desejo de
ser louvado pelos
homens, mas busque seu salário apenas diante de Deus e,
sempre rejeitando os
pensamentos bajuladores que surgem em seu coração,
desdenhe de si mesmo em
presença de Deus. Assim ele poderá, com a graça
de Deus, ser libertado
do espírito da vanglória.
Do orgulho
8. [12,1] Nosso oitavo
combate será contra o espírito do orgulho. Ele é mais
terrível e mais cruel
do que todos os precedentes, atacando sobretudo os
perfeitos e
esforçando-se por derrubar aqueles que estão quase alcançando o
cume das virtudes.
[12,3] Tal como uma
doença infecciosa e fatal que destrói não um membro
mas o corpo inteiro,
também o orgulho não destrói uma parte, mas a alma
inteira. Cada um dos
outros vícios, mesmo perturbando a alma, atacam
apenas a virtude que
lhes é oposta tentando vencê-la; eles não visam nem
perturbam a alma como
um todo. Somente o vício do orgulho a obscurece
totalmente e a leva à
ruína completa. Para melhor captar o que quero dizer
lembremos que a gula se
contrapõe à temperança, a prostituição à castidade, a
avareza ao
despojamento, a cólera à mansidão, e as demais espécies de
369
Salmo LII, 5.
malícias às suas
virtudes contrárias. Mas a malícia do orgulho, quando se
apodera da infeliz
alma, como o mais feroz dos tiranos que toma uma grande
cidade elevada, a
destrói inteiramente e a arrasa até as suas fundações.
[12,4] Testemunho disto
é este anjo caído do céu por seu orgulho: ele, que
havia sido criado por
Deus e dotado de toda a virtude e sabedoria, não quis
atribuir a graça ao
Senhor, mas à sua própria natureza. Por isso ele se
considerou igual a
Deus. É esta pretensão que o Profeta reprova quando
declara: “Você disse em
seu coração: ‘Eu me sentarei sobre uma montanha
elevada, colocarei meu
trono sobre as nuvens e serei semelhante ao
Altíssimo’. Mas você é
um homem, não um Deus.370” Outro profeta disse:
“Porque você se
glorifica no mal?371”, e o resto do Salmo: “Você está o dia
todo planejando
ciladas; sua língua é navalha afiada, autora de fraudes. Você
prefere o mal, e não o
bem, a mentira, e não a franqueza. Você gosta de
palavras corrosivas, ó
língua fraudulenta. Por isso Deus destruirá você para
sempre, o abaterá e o
varrerá da sua tenda; arrancará suas raízes do solo fértil.
Os justos verão isso e
temerão, e rirão à custa dele, dizendo: Eis o homem que
não colocou Deus como
sua fortaleza. Confiou em sua grande riqueza e se
fortaleceu com
ciladas!372”
[12,9] Sabendo disso,
enchamo-nos de temor e com toda vigilância
guardemos nosso coração
isento do espírito fatal do orgulho, repetindo-nos
sempre as palavras do
Apóstolo, quando houvermos adquirido esta virtude:
“Não eu, mas a graça de
Deus em mim373”, e também as palavras do Senhor:
“Sem mim vocês nada
podem374”, assim como as do Profeta: “Se o Senhor
não constrói a casa, em
vão trabalham os construtores375”, e: “Isto não
depende da vontade nem
do esforço do homem, mas da misericórdia de
Deus376”.
[12,10] Com efeito,
qualquer que seja o fervor de seu zelo e o ardor de seu
370 Isaías XIV, 13.
371 Salmo LI, 3.
372
Salmo LI, 4-9.
373
1 Coríntios XV, 10.
374
João XV, 5.
375 Salmo CXXVI, 1.
376
Romanos IX, 16.
desejo, aquele que está
ligado à carne e ao sangue não poderá atingir a
perfeição a não ser
pela misericórdia e a graça de Cristo. Como diz são Tiago,
“todo dom excelente vem
do alto377”, e o apóstolo Paulo: “O que você possui
que não tenha recebido?
E se você recebeu, porque glorificar-se como se não
tivesse recebido378”, e
vangloriar-se dos dons de outro como se fossem seus?
[12,11] Que a salvação
nos chega pela graça e a misericórdia de Deus379, é
testemunha este lutador
que não recebeu o reino dos céus como recompensa
pela virtude, mas pela
graça e misericórdia de Deus.
[Cf. 12,31-33] Sabendo
disso, nossos Pais nos transmitiram este ditame, de
que não é possível
atingir a perfeição da virtude de outro modo que não a
humildade, a qual
decorre naturalmente da fé, do temor a Deus, da doçura e
do total despojamento.
Obtém-se assim a caridade perfeita pela graça e a
bondade de nosso Senhor
Jesus Cristo, glória lhe seja dada por todos os
séculos. Amém.
377
Tiago I, 17.
378
1 Coríntios IV, 7.
379
Cf. Lucas XXIII, 43
Este livro é extraído da
obra:
Padres Népticos
FILOCALIA VOLUME I
ANTÔNIO O GRANDE A
MARCOS O ASCETA
Tradução do grego
Jacques TOURAILLE
Abbaye de BELLEFONTAINE
Sob supervisão do Pe.
Boris BOBRINSKOY
Tradução Luis KEHL
M M I X
Nota do Editor:
Na introdução a este
livro, escrita por Olivier CLEMENT, logo no segundo parágrafo é dito o seguinte
sobre a Filocalia: “A palavra filocalia significa “amor à beleza”, esta beleza
divino-humana da qual diz Denis Areopagita “suscitar toda comunhão”. Porém, na
época em que a obra foi composta, este termo indicava mais prosaicamente uma
antologia ou florilégio. De fato, trata-se de uma vasta coletânea, não de
extratos, mas de tratados integralmente transcritos e que constituem a “escola
mística da prece interior”. Tratava-se de sugerir a ação e a contemplação com o
objetivo de “descobrir “o reino de Deus em si mesmo, o tesouro escondido no
campo do coração”, alusão à parábola evangélica que descreve um homem que,
tendo encontrado um tesouro no campo, vende tudo o que possui para adquiri-lo.”.
Para mais detalhes, para receber esses textos formatados em PDF ou para participar de nossos grupos de estudo, entre em contato
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