INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA 3



V FÉ, TEMOR A DEUS, LEMBRANÇA DA MORTE 

Para a Filocalia, e é o que lhe dá seu caráter propriamente cristão, a fé constitui o primeiro e o último passo da vida espiritual. Toda plenitude “está concentrada no interior da fé”, diz Máximo o Confessor33. Somente a fé, não como “crença”, mas como relação, como confiança fundamental em Alguém, pode nos abrir o caminho para a vida ressuscitada que transformará em “virtudes” a energia usurpada pelas paixões. 

A fé é um encontro, ela aprofunda-se em uma “sinergia”, uma colaboração entre o Espírito de Deus e a liberdade do homem; através das “virtudes” que são outras tantas modalidades da “vida em Cristo”, ela permite a paz, o silêncio interior, o amor verdadeiro. Em suas Centúrias, Inácio e Calisto Xanthopouloi mostram que a fé está ligada à invocação fervente de Jesus; aquele a quem amamos, em quem depositamos nossa confiança, a este não cessamos de chamar, pois ele disse: “Sem mim vocês nada podem fazer34”. 

Eles acrescentam que “a fé celebra entre Deus e os santos a liturgia dos mistérios inefáveis” aos quais antecipa-se a última35 . Agora o intelecto e o coração (cuja ligação fundamental aparece cada vez mais) se invertem na metanóia, um termo que, mais do que arrependimento, designa uma reviravolta de toda nossa compreensão do real.

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31 Ibidem 

32 Evagro o Pôntico, Tratado prático, 53. 

33 Questões a Thalassius, 55.

34 João XV, 5. Inácio e Calixto Xanthopouli, Centúria espiritual 8. 

35 Ibidem, 16B 


 Verdadeira revolução copernicana que substitui o mundo do narcisismo pelo da alteridade, o mundo do homem destinado à morte pelo Deus-homem e nele do homem-em-comunhão destinado à ressurreição. A passagem não é alegria, mas crise, e muitas vezes crise terrível, como o amor. A fé nos faz entrar na luz de uma presença, uma luz infinitamente doce, mas também infinitamente lúcida (em todos os sentidos do termo), na qual nossa consciência julga a si mesma, como às vezes ela o faz num olhar de criança. O homem sai então de seu sonambulismo e de suas ilusões para conhecer, estreitamente imbricados, o “temor a Deus” e a “lembrança da morte”. O “temor a Deus”, uma expressão que é quase impossível empregar hoje em dia, não implica assim uma concepção terrorista do divino, nem uma obsessão malsã da culpabilidade individual. “Deus é amor”, e ele nos chama a tomar consciência tanto da condição humana real como de nossa responsabilidade para com esta condição. 

O “temor a Deus” nos faz tomar consciência, numa grande convulsão, da morte espiritual que nos soterra e da angústia não apenas psicológica: existem médicos para esta, não tão metafísica que se enrodilha no mais profundo de nós. Sentimos que “este mundo” de “vaidade”, como diz são Paulo36, ou seja, de vazio, de nada, vai nos absorver. E nós sufocamos neste vazio. Mas a angústia, quando se abre sobre o nada, abismo e platitude é insuportável, e nós nos desembaraçamos dela, como sugerimos, avaliando-a em termos de necessidades e medos, medos, a cada vez, como diz Heidegger em O ser e o tempo, “de alguma coisa do mundo”, este mundo no qual fomos jogados como náufragos perdidos. 

“É notável como, quando passa a angústia, dizemos de bom grado: não era nada – e é justamente este nada que nos angustiava.” “Temor a Deus” e “lembrança da morte” desnudam por sob tantas preocupações, acusações, justificativas, até mesmo sob tanta agitação piedosa, esta angústia fundamental. Esta recusa em nos identificarmos com o jogo mortal deste mundo, com suas drogas, suas importâncias, com a 36 Romanos VIII, 20. impessoalidade da espécie que faz nascer apenas para matar, desperta nossa responsabilidade: por nossa cegueira, faltamos ao outro, e em nosso destino pessoal, faltamos a Deus! 

A angústia designa a ausência de Deus, ou antes, minha ausência em relação a Deus, e eis, por instantes, na vida mais cotidiana, o que se pode bem chamar de inferno. Hoje em dia o teatro do absurdo, os aforismas da insignificância, aliás muito inspirados por romenos marcados pela literatura ascética da Ortodoxia, como Ionesco e Cioran, orquestram na cultura mais profana uma gigantesca “lembrança da morte”. Entretanto, esta, na perspectiva da ascese, no grito de profundis da fé, não participa desta vertigem. Ela descobre que Alguém, que desceu vitoriosamente ao inferno e continua sempre a descer, interpõe-se definitivamente entre o nada e nós. Então a “lembrança da morte” se torna “lembrança de Deus”. Não de qualquer imagem de Deus, mas do Deus humilhado, crucificado, ressuscitado e que nos ressuscita. 

A angústia, com todo seu peso, se torna confiança. E docemente, sem franzir o cenho, os olhos ficam marejados. É o penthos, o coração de pedra que se parte, o luto dos monges orientais em seus trajes negros sobre quê, nos mais avançados, estão representados os instrumentos da Paixão. É a nostalgia do Adão que somos todos nós quando nos descobrimos exilados do paraíso. Tão próximo este paraíso, num olhar, num sorriso, num jardim onde, à noite, canta o rouxinol, e, no entanto, sempre perdido diante do triunfo inelutável do horror. No jardim está o túmulo de Narciso, e fechamos os olhos que nos iluminavam. Então repetimos o Kyrie eleison e, com “lágrimas ascéticas”, entramos no mistério da Agonia no Jardim das Oliveiras, na “fonte de lágrimas” aberta pela lança no flanco oferecido do Bem-amado. 

Mas Maria de Magdala descobre, junto ao túmulo, o jardineiro. O paraíso se reabre, as lágrimas de amargura e de cumplicidade se transformam em lágrimas de alegria: “pneumáticas”, espirituais. As lágrimas se identificam à água do batismo, tornam ativa a graça batismal. Nelas se “liquefaz” o coração, dissolve-se a crosta que o encerrava. Lágrimas de morte e de ressurreição, água batismal, sem dúvida também as águas primordiais sobre as quais pairava o Espírito. “Aquele que se revestiu de lágrimas bemaventuradas como um traje nupcial conhece o sorriso espiritual da alma”, escreve são João Clímaco37, aludindo à parábola do festim para o qual os bons e os maus foram convidados sem outra condição justamente que a de vestir-se com seus trajes de núpcias. 


Léon Chestov, nas Revelações da morte, lembra a lenda russa segundo a qual Deus envia o anjo da morte para carregar a alma de um agonizante. Mas às vezes acontece que no último instante o anjo seja chamado e o homem sobreviva. Mas o anjo tem as asas cobertas de olhos. Ao se ir, ele substitui os olhos do homem por olhos que ele tem sobre as asas. Daqui em diante, o homem enxergará de outro modo, com a “lembrança da morte”, com a “lembrança de Deus”, com um desembaraço infinitamente aprazível e uma ternura em todo o seu ser. Nós vimos este olhar, na Rússia, entre os prisioneiros libertados dos campos, estes campos da morte que foram verdadeiros mosteiros em nosso século. O “temor a deus” agora é transfigurado pelo amor. Ele não é mais do que o espanto diante do “oceano de limpidez”, em cujo horizonte o céu e a água refletem um ao outro, como, em Cristo, o divino e o humano. “O puro temor não cessará jamais... ele expressa essa a estupefação do homem diante da glória de Deus38.”




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