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A DOUTRINA DOS OITO VÍCIOS (2) – EVAGRIO PONTICO

... continuação 

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A doutrina dos oito vícios - Evágrio Pôntico

IV. O DEMÔNIO DA TRISTEZA

A tristeza surge as vezes por frustração dos desejos, outras vezes ela é uma consequência da ira. Quando nasce da frustração dos desejos, acontece assim: Primeiramente surgem pensamentos que fazem a pessoa lembrar-se de casa, dos pais e da vida passada. E quando veem que a alma, em vez de resistir a estes pensamentos, as acolhe e se alegra interiormente com o prazer, então eles tomam posse da alma e mergulham-na na tristeza porque já não se tem mais o que se tinha antes, nem se pode ter por causa da vida presente. E quanto mais ela se alegrou com os pensamentos de antigamente, tanto mais se desencoraja e sente-se oprimida pelos que vem depois (P10).

A causa última da tristeza é para Evágrio um apego exagerado ao mundo: Quem ama o mundo há de experimentar muita tristeza; mas quem despreza as coisas deste mundo há de encontrar alegria em tudo (Geister: PG 79, 115).

Quando alguém deseja muita coisa da vida, facilmente ele fica decepcionado e cai na tristeza. Esta oprime o coração do homem, pressiona-o, ao passo que a alegria o dilata (diacheo e systello). Outra característica da tristeza é o apego ao passado. No passado tudo era melhor e mais bonito. O olhar para o passado torna a pessoa cega para o presente. Ela já não se abre mais para a realidade, mas antes refugia-se nas aparências transfiguradas do passado. E logo que é obrigada a confrontar-se com o presente, a pessoa se enterra em sua tristeza, de onde não se deixa mais retirar por coisa alguma.

A tristeza enfraquece a razão contemplativa. Nenhum raio de sol penetra nas profundezas da água, e a visão da luz já não clareia o coração invadido pelas sombras. O nascer do sol é uma alegria para o homem, mas mesmo com isto a alma perturbada experimenta sentimentos desagradáveis (PG 79, 1157).

V. O DEMÔNIO DA IRA

Estreitamente ligada com a tristeza está a ira. Cassiano coloca a ira antes da tristeza, e mesmo Evágrio, em seu escrito sobre os oito espíritos do mal (PG 79, 1150ss), trata da ira antes da tristeza. Pois por vezes a tristeza nasce da ira, que Evágrio descreve da seguinte maneira:

A ira é uma paixão muito ardente. Dizemos que é como uma fervura da parte emocional da alma contra quem nos fez uma injustiça ou quem nos parece haver feito uma injustiça. Ela azeda a alma o dia inteiro, mas, sobretudo, arrasta consigo a razão durante a oração, ao manter diante dos olhos a face do ofensor. Quando perdura e se transforma em ressentimento, provoca confusão à noite, desmaio e palidez do corpo e ataques de feras selvagens. Estes quatro sinais que se seguem ao ressentimento são quase sempre acompanhados de numerosos outros pensamentos (P11).

A ira obscurece o espírito do homem, rouba-lhe a clareza. Os pensamentos do homem irado são brotos de víboras venenosas e devoram o coração que os faz nascer (PG 79, 1156).

As emoções violentas arrastam consigo o homem, impedindo-o de pensar com clareza. Seu efeito sobre a alma é tão nefasto assim porque através delas o inconsciente negativo penetra na consciência, com todas as imagens que provocam o medo e que passam a dominá-lo. O homem fica de tal forma à mercê de seus afetos que se deixa conduzir por eles, e, sobretudo, deixa-se levar à vingança. Ira clama por vingança. Quando a vingança não é possível, a ira se transforma em ressentimento, um estado de ânimo de permanente e raivosa insatisfação, mas também em tristeza. 

Quando não resiste ao afeto da ira, o monge é na verdade devorado por ela, como diz Evágrio, ou, na linguagem de Jung: o eu perde a compostura, “quer dizer, não consegue mais defender sua existência contra o assalto dos fatores afetivos, uma situação que pode ser encontrada com frequência no início de uma esquizofrenia”.

VI. O DEMÔNIO DA ACÍDIA

O demônio da acídia, também chamado demônio do meio-dia, é o mais trabalhoso de todos. Ele ataca o monge pela quarta hora e o sitia até a oitava hora. Primeiro faz com que o sol se mova muito devagar, ou que não se mova de maneira nenhuma, e que o dia pareça ter 50 horas. Depois impele o monge a sempre olhar para a janela e a correr para fora da cela, para ver se o sol ainda está longe da nona hora, e olhar ao redor para ver se não vem chegando algum irmão. Além disso injeta uma aversão contra o lugar em que se vive e contra a própria forma de vida, contra o trabalho manual, e inocula a ideia de que a caridade desapareceu entre os irmãos e que não existe mais ninguém que possa trazer algum consolo. E se por estes dias alguém ocasionou-lhe uma ofensa, o demônio utiliza também isto para aumentar a aversão. Faz com que o monge anseie por outros lugares e onde possa encontrar mais facilmente o que precisa e onde possa encontrar uma vida menos trabalhosa e mais útil. E acrescenta que agradar ao Senhor não depende do lugar. Deus, diz ele, pode ser adorado em toda parte. A tudo isto acrescenta ainda a lembrança dos parentes e de sua vida passada, pintando-lhe como a vida é longa, e mantendo-lhe diante dos olhos as dificuldades da ascese. Mobiliza, como se diz, todas as suas baterias para que o monge deixe sua cela e se desvie de sua rota. Atrás deste demônio não segue diretamente nenhum outro: um estado de paz e de indizível alegria toma posse da alma após o combate (P12).

A acídia é o abatimento do corpo e do espírito, a moleza e frouxidão. Para os antigos monges, o demônio da acídia é o mais perigoso de todos. Ele vem acompanhado por quase todas as tentações e pensamentos. Enquanto os outros demônios não atingem senão uma parte da alma, o demônio do meio-dia ocupa a alma inteira (cf. P36). Ele sufoca a razão e rouba da alma todas as suas forças. A pessoa não tem mais gosto por coisa nenhuma.

Cassiano chama a acídia também de tédio ou temor do coração, opressão interior. A falta de vontade impele a pessoa ou a dormir ou a fugir da cela, a procurar agitação. Evágrio descreve com bastante humor o comportamento de uma pessoa acometida de acídia: O olho do preguiçoso se volta muitas vezes para a janela e seu espírito imagina as pessoas que vêm visitá-lo. Range a porta, e logo ele se levanta, ouve uma voz e olha curioso pela janela, de onde não se afasta, ouve uma voz e olha embasbacado para fora. Na leitura o preguiçoso boceja muitas vezes e sente-se poderosamente atraído pelo sono; desvia os olhos do livro e os esfrega, voltando-os para a parede. Depois olha de novo para o livro, lê algumas palavras, esforçando-se inutilmente por perceber o sentido das palavras. Conta as páginas do livro e examina a escrita. Censura a escrita e o feitio, e por fim fecha o livro e o coloca sob a cabeça para dormir. E dorme um sono leve, porque depois a fome desperta a sua alma, e ele a sacia (Geister: PG 79, 1160).

Gregório Magno menciona as consequências da acídia: desespero, desânimo, mau humor, azedume, indiferença, sonolência, tédio, fuga de si próprio, aborrecimento, curiosidade, dispersão no falar, agitação do espírito e do corpo, inconstância, pressa e vacilação. A acídia é a grande tentação dos eremitas. É uma questão de vida ou morte. Tudo é questionado, falta todo impulso interior, o coração parece gravemente enfermo, a alma confusa.

A alma adoece e sofre, mergulhada no amargor da acídia. Em tal excesso de sofrimento abandonam-na todas as forças. Sua capacidade de resistência fica prestes a abandonar o campo a um demônio tão poderoso. Ela perdeu a cabeça, comportando-se como criancinha que chora e se lamuria sem parar, como se não houvesse mais qualquer esperança nem consolo (Ant VI, 38).

Todo o organismo da alma fica abalado. O homem sente-se nos limites de sua condição humana. Recai num comportamento infantil, busca quem dele se compadeça.

André Louf considera a acídia a crise em que cai necessariamente aquele que elimina todas as distrações. A acídia é “uma espécie de vertigem diante do vácuo entre a alma e Deus, impotência de abrangê-lo ou, simplesmente, de suportá-lo”. Na acídia o monge chega às raias da loucura. “A ruína espiritual e a decadência psíquica o espreitam”. Mas aquele que atravessa esta crise, aquele que se mantém firme, ou que simplesmente a suporta, este experimenta uma profunda paz e alegria. “Um homem novo, mais harmoniosamente integrado, é o que sai desta provação”.

A acídia corresponde ao estado que M.L. v. Franz chama de “perda da alma”. “A perda da alma aparece como uma repentina falta de disposição, como um cansaço. A pessoa deixa de ter alegria na vida, sente-se vazia e inerte, para ela nada mais parece ter sentido”. Franz explica este estado pelo fato de uma grande parte da energia psíquica haver fluído para o inconsciente, e, por conseguinte, não se encontrar mais à disposição do eu. A energia foi sugada por um complexo inconsciente. Enquanto ira e tristeza são reações à não-satisfação dos três instintos básicos, na acídia os instintos são reprimidos. Para Evágrio o perigo da acídia consiste precisamente em que ela se esconde àquele a quem acomete. Sem que o homem perceba, os instintos desordenados assumem as rédeas, por vezes até mascarados de virtudes. A esta observação de Evágrio corresponde o que Franz constata em muitas depressões endógenas, a saber, que “no fundo de toda paralisação e estagnação da personalidade existe como que um desejo qualquer particularmente intenso (poder, amor, impulso de expansão, agressões, etc.), mas que o homem depressivo, por variados motivos, não ousa trazer à tona”. Na acídia os três instintos básicos atacam o homem a partir do inconsciente, como impulsos reprimidos, e que por isso já não podem ser claramente reconhecidos. E é precisamente o fato de não se ver o adversário contra quem se combate que torna a acídia tão perigosa. Os monges aconselham a perseverança, porque então há de surgir uma nova vida, há de chegar à paz e à alegria. Franz expressa isto, do ponto de vista psicológico, com estas palavras: “Quando por bastante tempo se reside neste estado, mais tarde quase sempre o complexo que havia sido ativado pela energia retirada retorna à esfera consciente: surge um intenso interesse pela vida, mas que agora quase sempre impele em uma direção diferente”.

VII. O DEMÔNIO DA VAIDADE

O pensamento da vaidade é um pensamento muito sutil, que com facilidade infiltra-se entre os virtuosos. Inspira-lhes o desejo de publicar suas lutas e de irem atrás da glória dos homens. Fá-los fantasiar que estão expulsando furiosos demônios, curando as mulheres, que multidões procuram tocar-lhes os mantos. Prediz-lhes que hão de tornarem-se sacerdotes, e já fazem o povo vir bater à sua porta em busca de conselho. E se por acaso eles não quiserem, hão de ser levados à força. E fá-los criar esperanças vãs, e entrega-os às tentações pelo demônio do orgulho ou da tristeza, que lhes inspira pensamentos contrários às suas esperanças. Às vezes entrega-os também ao demônio da luxúria, eles que pouco antes ainda apareciam como um santo e como um sacerdote digno de veneração (P13).

A vaidade não se encontra no mesmo plano dos outros vícios. Ela é por Cassiano atribuída à parte racional da alma. A vaidade surge quando os outros vícios parecem já ter sido ‘superados’. Mas ela neutraliza o esforço para vencer os vícios. E o demônio da vaidade é particularmente esperto, ele sempre se infiltra quando os outros demônios já parecem haver sido vencidos. Evágrio compara a vaidade com uma bolsa de dinheiro furada. A gente coloca nela o salário de seus combates. Mas ela não guarda coisa nenhuma. Sendo assim a vaidade neutraliza todos os esforços para alcançar a vitória. Faz com que o monge lute por uma motivação errada, não para se abrir a Deus mas sim para agradar aos homens. Mas com isto ele passa a orientar-se pelo exterior e perde a sinceridade de olhar para si próprio.

Mais de uma pessoa identificada com elevados ideais tem sucumbido à tentação da vaidade. Como o ideal conta com o apreço dos homens, através do esforço por alcançá-lo, ele se compromete a aumentar o sentimento de seu próprio valor. Na vaidade o que ocupa o primeiro plano é, em última análise, o próprio eu. Trata-se de glorificar o eu, e não de entregar-se a Deus.

VIII. O DEMÔNIO DO ORGULHO

O demônio do orgulho leva a alma a uma profundíssima queda. Convence-a a não reconhecer a ajuda de Deus, mas a acreditar que a causa de suas boas ações vem por ela mesma, e a olhar os irmãos de cima para baixo, como pessoas ignorantes e sem compreensão. Depois do orgulho vem a ira e a tristeza, e mais tarde, como último mal, a confusão do espírito, a loucura, e visões de uma legião de demônios nos ares (P14).

O orgulho não é apenas o último, mas também o mais perigoso dos vícios. O orgulhoso considera-se a si mesmo como Deus, e em última análise ele renega sua condição de homem. Isto o retira da realidade para um mundo de aparências em que ele incha-se cada vez mais, terminando na confusão do espírito. O orgulho é aquilo que C.G. Jung chama de inflação. A pessoa incha-se com o que contém seu inconsciente, e com isto ela perde cada vez mais o sentido da realidade. Por último passa a considerar-se como um grande reformador, um profeta ou um santo. Nega suas próprias sombras e sem perceber é arrastada pelo inconsciente. Segundo Jung, isto leva à perda do equilíbrio da alma, à dissolução da personalidade. Por conseguinte, é adequado falar-se do demônio quando nos referimos aos perigos do orgulho. Pois o orgulhoso, ao identificar-se com o arquétipo do inconsciente, entrega-se inteiramente ao seu poder, torna-se verdadeiramente um possesso. Por isso, precisamente no contexto do orgulho, os monges falam de confusão do espírito, ou mesmo de perda do espírito.

Os oito vícios e os demônios relacionados com eles ameaçam cada vez mais o homem. Enquanto os três impulsos básicos são relativamente fáceis de controlar, com os três estados de ânimo a luta é muito mais difícil. Do homem adulto espera-se que ele domine os três impulsos básicos de maneira a não prejudicarem sua personalidade como um todo. É claro que também existe aqui um mais e um menos. Como os instintos possuem uma função positiva, também não se trata de eliminá-los mas apenas de os ordenar e de os integrar. Mas quando passamos a ocupar-nos com os três estados de ânimo, trata-se de integrar as próprias sombras. Primeiramente torna-se necessário que admitamos as necessidades e os desejos, para que não tomem posse da alma como emoções negativas e escapem a todo e qualquer controle. Depois, precisamente na luta contra a tristeza e a falta de disposição, é do inconsciente que se trata, sobretudo, da integração da anima, da parte feminina da alma, que no sexo masculino, quando reprimida, se manifesta como mau humor. Esta luta, tanto segundo Jung como também segundo Evágrio, realiza-se na fase da meia-idade, e se demonstra como essencialmente mais difícil do que o domínio dos instintos. Na luta contra a vaidade e o orgulho trata-se da sinceridade para consigo mesmo e da relação com Deus. Na terminologia de Jung trata-se de saber se o Eu irá dar lugar ao Selbst, se o eu tentará assumir os conteúdos do inconsciente e com eles enriquecer-se, ou então se ele irá se abrir e se entregar ao numinoso que lhe vem ao encontro nos arquétipos do inconsciente, sobretudo no arquétipo de Deus. Do ponto de vista religioso trata-se de saber se eu quero usar Deus e os homens para mim mesmo, para minha própria glória, ou se quero servir a Deus e aos homens, se estou pronto a renunciar aos meus ideais e as minhas imagens de Deus para entregar-me ao Deus verdadeiro, para render-me ao Seu amor.

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