A doutrina dos oito vícios – Evagrio Pontico


21 DE JUNHO DE 2016

cfc870af4f5f98d3623de40f2ca8da03

A doutrina dos oito vícios é um capítulo interessante da psicologia monástica. Foi desenvolvida, sobretudo, por Evágrio Pôntico e Cassiano, mas aparece também em Clímaco, em Máximo Confessor e em outros. Nela se distinguem estes oito vícios: gula, luxúria, cobiça, tristeza, ira, acídia (preguiça), vaidade e orgulho.

A cada um destes oito vícios Evágrio atribui um demônio, que determina suas características. Nem todos provocam os mesmos pensamentos. Um provoca pensamentos de cobiça, outro pensamentos de orgulho. Nisto os demônios se distinguem também de acordo com sua espécie. Alguns são leves e atacam de repente – por exemplo, o demônio da luxúria. O demônio da acídia, pelo contrário, é pesado e pouco a pouco oprime a alma com sua força cada vez maior.

A estrutura dos oito vícios se dá de acordo com a tríplice divisão da alma segundo Platão. Os três primeiros vícios são atribuídos à parte dos desejos (epithymia), os três seguintes a parte excitável ou emocional (thymos), e os dois últimos a parte espiritual (nous).

Os três primeiros vícios – GULA, LUXÚRIA e COBIÇA – são instintos básicos fundamentais. Poderíamos atribuí-los a fase oral, anal e fálica no desenvolvimento da primeira infância. Estes instintos fazem parte da natureza humana, e não nos é possível simplesmente eliminá-los. Eles têm que ser integrados, é preciso que lhes seja imposta a reta medida.

Os três vícios seguintes – TRISTEZA, IRA e ACÍDIA – são estados negativos de ânimo, muito mais difíceis de ser superados. Estes estados não se deixam dominar como os instintos. O reto convívio com eles exige um equilíbrio da alma e uma maturidade interior, a que só podemos chegar quando nos ocupamos honestamente com os pensamentos e os estados de ânimo, e quando “nos abrimos” sem reservas para Deus.

Mais difícil ainda é combater os dois últimos vícios – VAIDADE e ORGULHO -, porque o espírito é o mais difícil de ser domado. Aqui é onde com mais facilidade os demônios podem enganar alguém.

A respeito dos oito vícios Evágrio fala de diferentes maneiras. Ele pode falar de impulsos e estados de ânimo, ou de pensamentos de cobiça ou de ira, ou então falar do demônio da cobiça, do demônio da ira. Ele, por conseguinte, personifica o vício. É como se fosse um interlocutor autônomo, um demônio que tenta alguém e que procura impeli-lo para um instinto, para uma emoção ou para uma cegueira espiritual. E cada um dos oito demônios possui sua técnica própria. O fato de identificar os demônios com os oito vícios mostra mais uma vez que na demonologia de Evágrio não se trata tanto de fenômenos extraordinários, como possessão, mas sim do elemento tenebroso e mau que cada pessoa experimenta em si, da luta contra as falsas atitudes interiores que procuram se estabelecer em nós, desta maneira criando obstáculos a nossa abertura para Deus. Evágrio descreve um por um os oito demônios que se encontram por trás dos diversos vícios.

I. O DEMÔNIO DA GULA

O demônio da gula rapidamente sugere ao monge o fracasso de sua ascese. Coloca-lhe diante dos olhos o estômago, o fígado, o baço, a hidropisia, uma doença prolongada, a falta do necessário, a falta de um médico. Muitas vezes leva-o a pensar também em determinados irmãos que foram vítimas dessas doenças. Às vezes ainda impele esses doentes a dirigirem-se aos ascetas e falarem-lhes de seu destino, pretextando que vieram a se tornar assim por causa da ascese (P7).

O demônio da gula, aqui, nunca instiga para comer em excesso. Ele apenas apresenta motivos que aparentam ser válidos e razoáveis contra o jejum. O demônio é por demais engenhoso para impelir alguém a um vício tão primitivo quanto o da gula. Seu método é a racionalização. Motivos razoáveis escondem as necessidades e desejos que se encontram por trás de tudo isto. Assim o demônio esconde-se atrás da razão para não precisar apresentar-se abertamente ao monge como pernicioso e mau. Ao que tudo indica, Evágrio percebeu este mecanismo da racionalização.

II. O DEMÔNIO DA LUXÚRIA

O demônio da luxúria força a desejar outros corpos. Ele ataca cruelmente os que praticam a continência, para que a abandonem, já que não leva a nada. Enlameia a alma e a seduz a ações vergonhosas. Fá-la pronunciar certas palavras e tornar a ouvi-las, como se o objeto estivesse visível e presente (P8).

O demônio da luxúria trabalha, sobretudo, através da fantasia, onde ele enche de imagens, de pensamentos, e desta maneira segue obscurecendo a razão. Ataca o monge de repente, quando ele menos espera, e imediatamente desperta nele uma paixão violenta (cf. P51). Este demônio costuma visitar os monges, sobretudo, à noite. Às vezes Evágrio diz que o demônio da luxúria entra diretamente no corpo e o incendeia (cf. Anti II, 45).


III. O DEMÔNIO DA COBIÇA

A cobiça lembra idade avançada, incapacidade das mãos para trabalhar, a vinda dos tempos de necessidade e de doença, o amargor da pobreza e a vergonha que significa ter que esperar dos outros o necessário (P9).

Também aqui o demônio não aborda diretamente o desejo, e sim apresenta toda sorte de razões que falam contra a pobreza e a generosidade. Não é o instinto que é estimulado, mas sim as razões para refreá-lo que são negadas, pintando-se os perigos que daí podem resultar. 

Os pensamentos insuflados pelo demônio da cobiça produzem medo e timidez, privam a pessoa do impulso interior para refrear o instinto e dirigi-lo para caminhos ordenados. Uma vez que não enxerga nenhuma motivação para se esforçar e para impor limitações, a pessoa – sem perceber – volta-se para o vício da cobiça. Deixa-se dominar pelo demônio da cobiça, porque na própria mente são vistos como maus todos os motivos para lutar contra o instinto. Aquele que já conviveu com viciados em drogas e com os argumentos que eles apresentam, sente-se confirmado pelas observações de Evágrio. Também aqui o que é questionado, com motivos aparentemente razoáveis, são todos os motivos para nos impormos restrições. Mas na realidade o que está por trás de todos estes motivos é a infantil necessidade de possuir sempre mais. Por não haver aprendido, quando criança, a renunciar e a adaptar-se à realidade, a pessoa é agora dominada pelo instinto, ou, como diz Evágrio, posta em xeque pelo demônio da cobiça. Segundo Freud, para nos adaptarmos à realidade não se pode dispensar uma certa renúncia ao instinto.


Continua...

 


https://polisfides.wordpress.com/2016/06/21/a-doutrina-dos-oito-vicios-evagrio-pontico/


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Patrologia e Patrística: Âmbito e definições

Experiências Fora do Corpo (3) na Literatura Ocultista e a Visão Cristã

É Urgente Orarmos Assim...