A vigilância e a ternura
A vigilância e a ternura
O esquecimento é o "gigante do pecado", dizem freqüentemente, os Padres népticos. Esquecimento: endurecimento de coração, como acabamos de ver, dureza de coração. O homem muitas vezes, vive como um autômato, na temporalidade sem presente, donde o porvir não cessa de fazer sombra sobre o passado. O homem não sabe que Deus existe, que vem para ele e o ama. Não sabe que, no perdão e na luz de Deus, tudo existe para sempre.
A lembrança da morte desloca esta zona aparentemente clara, bem balizada, que o homem recorta da superfície da existência. A troca da lembrança da morte pela lembrança de Deus desencadeia o despertar, como o de Jacó visitado pelo sonho (e para nós, Cristo é nossa escala, para sempre). "Certamente o Senhor está nesse lugar e eu não sabia. Tive medo e disse: "Que temível é este lugar! Aqui é a casa de Deus, aqui é a porta dos céus" (Gen 28,16-17).
O despertar é escatológico: Cristo é a escala, é o último instante, o juízo e o "Juízo do juízo", a transfiguração universal. O despertar é a vigília das virgens prudentes. Não é que elas sejam mais virtuosas que as outras, nota São Serafim de Sarov, pois as outras também souberam conservar sua integridade. Porém, sua lamparina está provida de azeite, e o azeite é a graça estremecedora do Espírito respondendo à fé e à humildade.
Niicolás Cabasillas, que escreveu para os leigos dedicados às ocupações do século, pede-lhes somente que recordem, em todo o tempo, que Deus nos ama com um amor exagerado - "manikis éros" - "Quer vás, quer venhas, quer trabalhes, quer fales, que este pensamento esteja a vos despertar muitas vezes: Deus vos ama. Ele vos ama de tal modo que por vós saiu de sua impassibilidade até morrer de amor por vós. Ele quis, por vós, chegar a ser Aquele que dá sua vida pelos seus amigos, Ele o inacessível. Ele desce, busca o servo a quem ama; Ele, o rico, inclina-se até a nossa pobreza. Apresenta-se a si mesmo, declara seu amor e roga que lhe seja retribuído... Rechaçado, não se ofende; espera pacientemente como um verdadeiro amante. Mendigo de amor, ladrão de amor que vem na noite, que vem em minha noite. O "Fiat" da Virgem, permitiu-lhe retomar, pelo interior, sua Criação; espera-nos no abismo do coração, bate à porta de nossa consciência a partir desse coração, a partir do mais profundo de nós mesmos, pois se converteu em nosso "alter ego", disse Cabasillas. Ele não nos pede, em primeiro lugar, que O amemos, mas que compreendamos o quanto Ele nos ama. Então, nos despertaremos. "Nepsis": é o despertar, a vigília, a vigilância.
No sentido mais amplo, pois nossa existência toda inteira é entorpecente, porém também, no sentido mais preciso, que nos recorda o simbolismo litúrgico do dia e da noite, da luz e das trevas, da luz que brilha, doravante, nas trevas. O "neptico" pratica a "guarda do coração": mantém aberto o caminho entre a consciência e o santuário interior, o sol secreto que as nuvens das "paixões" intentam cobrir sem cessar. Atravessa o "oceano fétido que nos separa de nosso paraíso interior".
A consciência, armada com o Nome de Jesus, deve perscrutar atentamente os "logismoi" - a palavra vem do Evangelho - quer dizer, os pensamentos como impulsos germinativos que enternecem o coração. Ou o pensamento é bom, criador - e é necessário fortalecê-lo, revestindo-o com a bênção do Nome - ou o pensamento é o gérmen de uma obsessão, de uma paixão - e então, será necessário jogá-lo contra o penhasco, como aos filhos da Babilônia; e o penhasco é o Nome.
Tendo o cuidado de desacomodar a força vital que ela mobilizava, para pacificá-la e transformá-la, durante a luta contra a obsessão nascente, a invocação deve acelerar-se, até que chegue a paz.
A noite é particularmente propícia para este exercício de discernimento e de metamorfosis, aspecto fundamental da "nepsis": porque ela é silêncio e recolhimento; mas, também, porque ela é trevas. O monge entra na noite como entra no deserto, para enfrentar as potências "deífugas", para fazer brilhar no infra-consciente, não só individual, senão pan-humano e cósmico, a luz do supra-consciente. O que importa é penetrar este bloco de noite e de deserto que trazemos em nós. O sono deve ser moderado, às vezes, transpassado pelo ofício da meia-noite, suprimido frequentemente por uma longa vigília. É necessário tentar dormir invocando o Nome divino-humano para que a oração penetre no sono mesmo. "Orar numa só palavra. Tu deves estar presente, do deitar ao despertar".
Para os leigos, como para aqueles que são débeis, Cabasillas recomenda confiar a guarda do coração ao Sangue Eucarístico. Enquanto que, um grande monge poderia (como fez Santa Maria do Egito) comungar não mais que uma só vez depois de toda uma vida de preparação, recebendo então em plena consciência a comunhão como uma fonte deificante, os débeis, diz Cabasillas, devem comungar freqüentemente. É, então, o Sangue Eucarístico que guarda o seu coração; e Cabasillas não recomenda nada mais que breves meditações nas quais tomamos consciência do "amor extremado" de Deus por nós.
Aqui, nesta recordação da morte, que chega a ser recordação de Deus, instala-se o mistério das lágrimas, o carisma das lágrimas. A civilização ocidental converteu-se numa civilização que não chora. É por isto que nos dedicamos, tanto na arte como nas ruas, a gritar cegamente. Como se os jovens quisessem libertar neles o gemido do Espírito e não soubessem como fazê-lo. Pois bem, "quando o homem recebe o dom das lágrimas, é o Espírito quem chora docemente nele", diz Simeão Metafraste, comentando S. Macário, o Grande. As lágrimas espirituais são a água batismal na qual se dissolve a dureza do coração. Quando chora, o espiritual volta a ser como as águas originais oferecidas ao sopro do Espírito.
As lágrimas são, em primeiro lugar, lágrimas de penitência; nascem "de uma muita profunda humildade". São as lágrimas da recordação da morte, do pecado, compreendido em toda sua profundidade, em suas ramificações e seus encadeamentos insuspeitos. Porém, pouco a pouco, pela recordação de Deus, as lágrimas de arrependimento se transformam em lágrimas de gratidão, de admiração e de alegria. "A fonte das lágrimas, depois do Batismo, é algo maior que o Batismo", dizia São João Clímaco. Aquele que se revestiu de lágrimas como o de um traje de bodas, este conheceu o bem aventurado sorriso da alma, pois sorrir através das lágrimas é símbolo de ressurreição. E as lágrimas carismáticas que correm docemente, sem contração do rosto, tem já algo de uma materialidade transfigurada.
O canto das lágrimas é uma das chaves da arte litúrgica ortodoxa; já sensível no monaquismo bizantino, manifesta-se muito particularmente na ortodoxia de língua árabe, cujo canto, um pouco nasal, é a voz das lágrimas.
Igualmente, esta "dolorosa alegria", esta "bem-aventurada aflição", é provavelmente uma das chaves da iconografia ortodoxa - cuja obra mestra é, talvez, a "Virgem da Ternura".
Ternura, "katanyxis, oumilenié", outra palavra decisiva no vocabulário 'hesicasta'. As lágrimas são "lágrimas de doçura". O contrário da "sklero-cardia" é a "ternura divina do coração". Toda a força de paixão do asceta, crucificada pela "recordação da morte", purificada e iluminada pelas lágrimas carismáticas, converte-se numa imensa ternura paterno-maternal, numa capacidade de receber sem julgar, percebendo sempre mais além do pecado, o mistério irredutível da pessoa. Carisma da "simpatia", que envolve o outro com uma alegria de ressurreição e lhe faz compreender que é amado. Carisma de feminilidade espiritual, segundo a imagem da Mãe, "capacidade de sentir a presença de Deus até mesmo nas almas devastadas", como dizia Paul Evdokimov.
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https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/a_oracao_do_coracao_olivier_clement.html#4
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