INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA 4 - AS VIRTUDES, FORÇAS DIVINO-HUMANAS
VI
AS VIRTUDES, FORÇAS DIVINO-HUMANAS
Quando deixamos a vida ressuscitada crescer em nós, ela instaura pouco a pouco a pessoa em sua verdadeira natureza que, segundo a Filocalia, é inseparável da graça. Em Cristo, as forças do humano são vivificadas pelas energias divinas, pelos Nomes divinos que elas refletem. Criado à imagem de Deus, o homem esconde, com efeito, forças que o levam a ele e se desdobram na irradiação de sua essência. As “virtudes” do homem – seria melhor, fora de qualquer moralismo, evocar suas forças, suas energias (de resto, este é o 37 A escada santa VIII, 41. 38 Máximo o Confessor, op. cit., 10,289. sentido etimológico da palavra virtude, pois virtus, em latim, designa a força viril) – são participações às energias divinas, ao modo de ser de Deus revelado por Cristo.
O homem é chamado a manifestar a beleza, a bondade, a sabedoria, a forte mansidão que são como que raios disto que são João denomina “a luz da vida”. Estes Nomes divinos, que Denis o Areopagita comentou com incomparável poesia, são muitas vezes aplicados pela Escritura e pelos Padres ao Espírito Santo, “que dá a vida”: “Espírito de sabedoria”, “de força”, “de glória”, “de liberdade”; o homem “à imagem do Espírito”, dizem as Homilias Macarianas39, é coroado por uma chama de Pentecostes. “A glória de Deus é ‘o homem vivo’, dizia santo Irineu de Lyon, precisando: É somente onde está o Espírito Santo que existe o homem vivo e verdadeiro40”. Podemos ainda citar um dos grandes poetas de nosso século, Rainer-Maria Rilke, que dizia em seu leito de morte: “Não se esqueçam de que viver é glória”.
As “virtudes” aparecem assim numa relação antinômica com as “paixões”: elas libertam e transfiguram a energia que as “paixões” desviam, confiscam, bloqueiam. O ímpeto da natureza, usurpado nos descaminhos do nada, provoca as “paixões” que desagregam a pessoa. Tomado, reforçado, iluminado pelo dinamismo da ressurreição, ele suscita as “virtudes”: ele unifica e exalta a pessoa no “mistério de Cristo”.
São Máximo o Confessor compara esta metamorfose a afiar uma espada: retirar a ferrugem equivale a permitir que a luz do aço brilhe41 . A cólera, perversão do ardor (o thymos que reside no peito, segundo a velha tripartição indo-européia retomada pelos Padres), torna-se, no cadinho da graça, domínio e mansidão, a mansidão dos fortes. O desejo das entranhas – a epithymia – pode da mesma forma se transformar em eros por Deus: “Que o amor carnal, diz João Clímaco, nos sirva de modelo para nosso desejo por Deus. Nada impede de tomar exemplos para as virtudes naquilo que lhes é contrário42”. E o nous, a inteligência da cabeça, pode encontrar sua raiz no coração. 39 Homilias 46, 5-6. 40 Adv. Haer. V, 9, 163. 41 Disp. Pyrrhus, PG 91,312A. 42 A escada santa XXVI, 34. Máximo o Confessor, nas suas Centúrias sobre o amor, nota que “no homem cujo intelecto (nous) se volta para Deus, mesmo a concupiscência (epithymia) dá forças ao amor ardente por Deus, mesmo a violência da cólera (thymos) se põe no mesmo movimento em direção ao amor divino.
Pois, a longo prazo, a participação na luz divina (...) unindo toda a força de suas potências, a transforma em um amor ardente, insaciável43”. Sem dúvida, apenas Denis o Areopagita soube dar a chave desta metamorfose que entranha nos espirituais um estranho respeito das “paixões”: “Aquele que deseja a pior das vidas, diz ele (...) por seu próprio desejo tem parte no Bem”. Tudo é levado pela humildade e tudo, por intermédio da paciência, da esperança e da “impassibilidade” desemboca no amor, no amor desinteressado e criador.
Para se reencontrarem Deus e o homem saem cada qual de si mesmo: esta humilhação de Deus “até a morte, e morte na cruz44”, a partir do momento em que o homem se conforma com isto pelo laço infinitamente confiante da humildade, permite a verdadeira comunicação da vida divina. “Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração45”, diz Jesus. A “escada” das virtudes, tantas vezes comentada e representada de uma maneira quase estóica, é na realidade um mergulho na humildade.
Santificar-se significa tornar-se um pecador consciente, e com isto abrir-se para a graça. Os mais rudes, os mais severos consigo mesmos não se enganaram nisto e é justamente em sua Escada santa que João do Sinai anotou: “Não foi dito: eu jejuei, eu velei, eu dormi sobre o chão duro, mas: eu me humilhei e logo o Senhor me salvou46”. A humildade é esta despossessão de si, este abandono ativo que permite a Deus nos iluminar. A humildade está ligada à “ruptura” em relação ao mundo, tipicamente monástica mas que todo cristão pode experimentar por meio de um discreto, quase imperceptível, distanciamento. Ela permite a paciência nas vicissitudes da vida, esta paciência da qual os espirituais dizem que vale, para os que permanecem no século, por todas as disciplinas monásticas de abstinência. A 43 Centúrias sobre o amor II, 48. 44 Filipenses II, 8. 45 Mateus XI, 29. 46 XXV, 14. paciência nos configura à de Deus, figura maior de sua Paixão, pois este não tem ideia do mal47 e o recebe em plena face como Cristo recebe as bofetadas com os olhos tapados. “A face de Deus verte sangue na sombra”, dizia Léon Bloy e Serge Boulgakov escreveu páginas maravilhosas sobre esta paciênciapaixão do Pai48 . Da humildade e da paciência nasce uma nova relação com o tempo que é designada pela virtude da esperança. Para Heidegger, a estrutura fundamental da temporalidade, sua “existencial”, é a angústia. Para o cristão, é a esperança. Como a angústia, a esperança mira o devir, mas este não é o nada, mas o Reino.
O futuro suposto pela angústia dá medo, e é por isso que os homens multiplicam ridiculamente seguros e garantias de segurança. O futuro suposto pela esperança triunfa sobre a usura do tempo, atravessa-o em direção à eternidade. É por isso que os mártires morrem num êxtase de ressurreição e os monges, que interiorizam o martírio, puderam criar o adágio: “Dê seu sangue e receba o Espírito”. Em seus pequenos tratados, Marcos o Asceta escreve que “A esperança alarga o coração, enquanto a angústia o encolhe...49” E também: “O coração em que habita Cristo desde o batismo não pode ser aberto (...) senão pela esperança que abarca tudo50”.
Assim as “virtudes” - fé, temor a Deus, humildade, paciência e mansidão, esperança – culminam na “impassibilidade” (apathéia). Esta não tem nada de negativo, mas designa uma paz profunda (hésychia) que não se compraz absolutamente em si mesma, mas, penetrada pelo silêncio de Deus, se abre ao infinito sobre os seres e as coisas. A alma não ignora as “paixões”, ela as vê lucidamente nascer e fenecer, mas não se deixa perturbar por elas. A apathéia sintetiza todas as “virtudes”: “A coroa de um rei não é feita de uma única pedra preciosa, e a impassibilidade não atinge sua perfeição se negligenciarmos uma única virtude, seja lá qual for51”.
É assim que podemos ver ascetas que praticam quase todas as virtudes abandonarem-se de repente a uma paixão desenfreada, com uma violência que pecadores humildes desconhecem, e tornarem-se, por exemplo, fanáticos atrozes. 47 Cf. J-M Garrigues, Dieu sans l'idée du mal. Limoges, 1984. 48 Epílogo a seu tratado Le Paraclet, trad. fr. Paris, 1946, pg.343s. 49 Dos que pensam ser justificados... 114. 50 Do batismo. 51 João Clímaco, A escada santa XXIX, 12.
A impassibilidade une o homem e a obra ao amor divino pela criação, este “amor louco” de que falam Máximo o Confessor e Nicolas Cabasilas. O homem pode então amar com um amor que não mais sujeita – nem a ele nem ao outro – mas liberta. “A impassibilidade não exclui absolutamente o amor, mas o engendra52”. Aquele que sabe, com todo seu ser, que Cristo ressuscitou e que tudo, definitivamente, vive nele, este pode amar mesmo seu inimigos e “derrubar o muro de separação que nós mesmos construímos53”.
A “impassibilidade” afina os sentimentos, permite sentir os seres e as coisas como que do interior, torna as intuições, pensamentos e atos, infinitamente mais delicados e mais atentos. Simultaneamente, algo de real se define no homem: “Seja como um rei em seu coração, sobre o trono da humildade. Você ordenará ao riso que venha, e ele virá. Ordenará às lagrimas que venham, e elas virão. Ordenará ao corpo, não mais tirano, mas servidor: fala isto, e ele fará54.”
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