INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA 2
II O HOMEM, IMAGEM DE DEUS
O homem, diz a Escritura, é feito à imagem de Deus. É claro que ele é modelado pela matéria do mundo e multiplamente condicionado por sua existência cósmica e social. Mas, em última instância, ele escapa a toda definição, pois tem sua raiz num “alhures”, ele é livre, de uma liberdade que pode ser negada pelo ódio ou realizada no respeito e na comunhão. O Deus do qual ele é imagem não é um déspota longínquo, que então seria responsável por todos os males que nos assolam. Ele é um oceano de luz, “mar de limpidez” como dizem alguns, um abismo sem fundo que só pode ser evocado negativamente. Mas este abismo não é impessoal: ele tem em seu bojo como que uma pulsação de amor, um Outro no Um, uma Palavra que nasce do Silêncio e é transportada por um Sopro imenso. Deus se “extasia” neste Sopro e é a beleza de sua criação; este Outro-em-Um vem a nós para 8 Recomendamos a curta mas profunda obra La Prière de Jésus (Chevetogne, Livre de vie no. 122) 9
Nesta introdução tentamos expressar numa linguagem moderna, para homens e mulheres cuja vida espiritual não pode ser exclusivamente monástica, as intenções essenciais da Filocalia. Não hesitamos em pesquisar em toda a tradição patrística e hesiquiasta, inclusive nos textos que Macário e Nicodemos não incluíram em sua coletânea porque haviam sido editados (são Isaac o Sírio, em sua versão grega de 1770), ou porque viriam a ser editados por eles mesmos. nos arrancar do nada perverso que perfura de caos e horror a criação boníssima. Em todas as religiões, como em todos os ateísmos, trabalha o Espírito10, manifesta-se o Verbo, desenhando sua encarnação no esplendor das coisas e nas revelações da história, no cosmos e nas leis que constituem seus textos fundadores.
O cosmos e a história encontram seu pleno sentido em Jesus de Nazaré, um homem, decerto, um rosto, um amigo, mas também o Verbo feito carne, uma existência no Espírito, portanto em comunhão sem limites. Aquele que, mergulhando por livre amor na morte e no inferno de que somos cúmplices, libertou a humanidade e o universo para transformá-los em oferenda de eternidade. Ele realiza secretamente, sacramentalmente, e nos oferece – pois a imagem significa vocação – toda a condição real (no sentido da majestade) do homem, criador criado; ele realiza secretamente, sacramentalmente, e torna possíveis para nós as sínteses de que fala são Máximo o Confessor: do masculino e do feminino, da terra tornada opaca e de uma transparência a um tempo final e original, do carnal e do espiritual que devem simbolizar-se mutuamente, do criado e do incriado que ele une sem separação nem confusão. A salvação significa o transbordamento de uma vida luminosa, de uma vida pura enfim liberada da morte (pois a própria morte biológica se inverte e torna-se uma “páscoa”, no sentido próprio da “passagem”).
A cruz, nova Árvore da Vida, eixo do mundo, significa que Deus conhece humanamente toda a tragédia de nossa condição – Deus, por um instante ateu: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” – e que subitamente a descortina sobre a ressurreição. “Era preciso que Deus se encarnasse e morresse para que nos pudéssemos reviver”, escreve Gregório de Nazianze11 .
Daí para frente, o homem é chamado a unir sua liberdade às energias do Espírito para fazer chegar a ressurreição a todas as coisas. A Cruz, diz Máximo o Confessor, julga e condena todos os julgamentos. A contemplação de Deus sofredor, do Deus crucificado sobre todo o mal do mundo, quebra o coração mais revoltado, abre-o para a graça que não é outra coisa que a própria vida do “Senhor-Amor”, como o chamava o “Monge da Igreja do Oriente”. O Cristo médico vem não para os saudáveis, mas para os enfermos, ele se senta à mesa dos pecadores. O dono da casa chama para o 10 Tanto o hebraico ruah como o grego pneuma significam “sopro”. 11
Gregório de Nazianze, Discuro 45 sobre a Páscoa, 28, PG 36,661. banquete do Reino “os estropiados, os cegos, os bêbados” e todos aqueles que andam “pelos caminhos e ao longo dos muros12”. Sem outra condição que de vestir seu coração com uma roupa de festa, a vestimenta da gratidão e da alegria. No Corpo de Cristo em que entramos pela iniciação batismal, aonde encontramos – trata-se da eucaristia – “a vida em seu mais alto grau de intensidade13”, a existência na morte se transforma em existência no espírito, que o Credo define como aquele “que dá a vida”. “O Verbo, escrevia santo Atanásio de Alexandria, se fez portador da carne para que pudéssemos ser portadores do Espírito14. E este, na medida de nossa confiança, de nossa humildade, de nossa criatividade também, intensifica em nós, pouco a pouco, a imagem em uma semelhança que é participação nas energias divinas. “O coração se parte e se renova, ele se faz nos mistérios do Espírito (...), ele aprende, ele é cumulado de forças místicas até atingir as alturas do amor e até que a felicidade more nele.15” Então o homem pode realizar sua condição de “fronteira” entre o invisível e o visível, entre o espiritual e o carnal, condição propriamente crística.
Ele compreende que todos os homens, de todos os tempos, de todos os lugares, são “consubstanciais”, compõem um só ser em Cristo, Adão último, Adão único, e que cada qual se torna incomparável, um rosto de ícone, na medida de sua inserção nesta imensa unidade. Participação da humanidade no “movimento imóvel do amor” do divino. Ele compreende também – e esta compreensão se torna dever, ação – que é chamado a tomar sobre si todo o universo, a revelar nele o dom e a linguagem de Deus. O homem unificador unifica-se: “Não é apenas a alma, nem apenas o corpo, que define a pessoa; eles estão integrados nela.16” O homem unificador se realiza superando-se: ele se deifica pouco a pouco, vale dizer, ele se torna capaz de amar.
12 Lucas XIV, 21-23.
13 Nicolas Cabasilas, La vie em Christ, ed. Chevetogne, 1960, pg. 187-188.
14 De l'Incarnation 8, PG 29,996C.
15 Isaac o Sírio, Carta 4.
16 João Damasceno, A fé ortodoxa, PG 94, 616.
III A GUARDA DOS MANDAMENTOS E A GRAÇA BATISMAL Gratuidade da salvação: é neste contexto que devemos entender a afirmação, frequente nesses textos, de que Cristo se entrega a nós primeiro por intermédio dos seus “mandamentos”. Estes estão contidos fundamentalmente no Sermão da Montanha e, sobretudo, nas Bem-aventuranças, das quais vêm em primeiro lugar, como o veremos, as lágrimas e a pureza do coração. A pessoa de Cristo é a síntese dos “mandamentos”. Tentar observá-los equivale a estreitar com ele uma relação de pessoa a pessoa, de sorte que sua vida ressuscitada cresce aos poucos em nós e que, depois de termos sido seus servidores, nos tornaremos seus amigos. Pois “a essência de todas as virtudes é nosso Senhor Jesus Cristo17”. Orígenes e Máximo o Confessor sustentam que a “guarda dos mandamentos” designa na realidade um misterioso percurso de Cristo em nós, de seu nascimento até a paixão, de sua transfiguração até sua ressurreição. Nem um só instante ele nos abandona, e mesmo nossas agonias, assumidas pela sua, se tornam caminhos de ressurreição. Segundo Máximo o Confessor, Cristo “sofre misteriosamente conosco por todo o tempo até o fim do mundo por causa de sua doçura e de um modo análogo ao sofrimento que se encontra em cada um de nós.18” Ele é a um tempo nosso “lugar” e nosso companheiro, combatendo conosco contra o mal, participando com seu Sopro vivificante em nossas aspirações criadoras, “preferindo cada um”, como dizia o patriarca Athenágoras19 .
A vinda de Cristo em nós se faz mais especificamente pela iniciação cristã, do batismo à crisma e daí à eucaristia. A Filocalia insiste antes de tudo sobre a graça batismal, que é preciso reencontrar e libertar das profundezas do nosso ser. Assim poderemos descobrir “a graça perfeita do santíssimo Espírito, que o Senhor, pelo batismo, espalhou em nossos corações como uma semente
17 Máximo o Confessor, Ambigua, PG 91,1081
18 PG 91, 713.
19 Cf. Olivier Clement, Dialogue avec le Patriarche Athénagoras, Paris 1976, pg. 149. divina20”. “Raiz de nossa ressurreição, o batismo nos faz morrer para nossa própria morte e ressuscitar com Cristo”.
Ele inaugura um processo por meio do qual esta morte-ressurreição torna-se a própria “cifra” de nossa existência, transformando nossas mortes parciais, tanto as do destino como as da ascese, em indispensáveis rupturas de nível. A Filocalia fala bastante menos da eucaristia, mas gosta de citar uma palavra atribuída a são João Crisóstomo: “O coração absorve o Senhor e o Senhor absorve o coração.” Se a via hesiquiasta recusa energicamente toda imaginação, tida como ilusória, o homem em oração acha-se muitas vezes diante de um ícone e chega a acontecer que ele sinta brotar dali a chama que abrasa seu coração. A “guarda dos mandamentos” não é assim a tensão moralista que não pode levar senão ao aprofundamento da ferida que se quer curar (a derrota, por exemplo, torna-se glutoneria, depois esta se torna vampirização das almas...), mas ela define uma relação: a meditação das Bem-aventuranças e o ícone atingem nosso centro mais central, o coração, a partir do qual a vida de Cristo invade todo nosso ser e, se soubermos descartar as peles mortas, o transforma “desde dentro”.
É assim que, no século VI, no deserto de Gaza, o “grande ancião” Barsanulfo estabelece um “contrato” com seu discípulo Doroteu que era atormentado pelo pecado da carne: que Doroteu não mais se preocupasse com isto, pois era uma falta que Barsanulfo tomava para si, mas que ele reforçasse sua relação com Cristo pelo exercício da humildade, da caridade, da prece confiante, do humilde serviço ao próximo. Assim foi feito, e o coração do discípulo se transformou, e com ele, pouco a pouco, toda sua vida. É por isso que a Filocalia não se detém jamais nas observâncias, nas práticas, na “obra exterior”, mas insiste, antes de mais nada, no despertar do “homem interior”, na tomada de consciência do “reino de Deus em vocês, o tesouro escondido no campo do coração21”.
20 Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.
21 Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.
IV AS PAIXÕES
A primeira etapa da vida espiritual é a “prática” (práxis) que visa liberar o homem das paixões para torná-lo capaz de amar. Para a Filocalia, a paixão fundamental é a morte. Imagem de Deus, o homem deseja a eternidade, mas paradoxalmente sofre a morte. “A angústia oculta da morte”, sua recusa (e seu fascínio), constitui a primeira a paixão que todas as demais não fazem senão valorar. O homem busca o esquecimento, ou a divinização ilusória, na dominação, na fusão, no ódio. Ele tem necessidade de escravos (ou de sê-lo) e de inimigos (até odiar a si mesmo). São Paulo distingue “a tristeza pela morte” da “tristeza por Deus”. Pelo esquecimento ou pela ignorância desta, o homem, mordido pela “tristeza pela morte”, refugiase nas paixões. Existe uma grandeza das paixões, que Péguy celebrava quando dizia que somente os pecadores mais trágicos poderiam “banhar-se na graça”. A paixão é marcada com o selo do infinito, ela exprime o desejo de infinito de nossa alma. Simon Frank notava que “em Dostoievski, o mal tem sempre uma origem espiritual... A revolta, o orgulho, a zombaria, a crueldade, o ódio, a sensualidade (...) provêm para ele da tendência que a alma tem de vingar sua santidade profunda ultrajada e humilhada, a afirmar os direitos desta, nem que de uma maneira tola e perversa22.”
Seja como for, entretanto, o objeto da paixão não pode corresponder a este desejo, a esta santidade secreta. Com efeito, ele próprio permanece contingente: absolutizá-lo, equivale a ignorar sua humilde verdade e finalmente destruí-lo. “Eu amei de mais, por isso matei”, diz o amante assassino. Ávido de infinito, ignorante do infinito, o homem se ama e se odeia infinitamente, ele se pretende soberano e se descobre escravo. Ele procura o absoluto e encontra o nada. A paixão parece exaltá-lo, ela se estende como uma doença enganadora e, quando ela se vai, não resta mais do que amargura. É um estranho “inflar” e “desinflar” do nada, dizem os ascetas. Sede jamais estancada, ela atira o homem nos ciclos do paroxismo e da depressão, do prazer e da dor, da tensão e do desânimo. Ela perverte o intelecto e os sentidos que só querem conhecer aquilo que lhe corresponde. É uma droga e o intelecto diante dela oscila entre a revolta (cada vez menos) e a justificativa
22 La crise de l'humanisme du point de vue de Dostoievski, Hochland 28, ano X, pg. 295 irracional e encarniçada (cada vez mais).
A inteligência então se dispersa, as relações entre os homens se desintegram. O espírito dissocia-se do “coração”, e o coração profundo envolve-se em trevas e lodo, um lodo que endurece de sorte que o coração se torna de pedra. O esquecimento, um esquecimento metafísico reina, como sublinhou Marcos o Asceta23: o homem se torna insensível, ele já não sabe amar nem admirar, por toda parte ele não vê senão cio e violência; a humanidade, diz são Máximo, “divide-se em incontáveis fragmentos e nós, que entretanto constituímos uma única natureza, devoramos uns aos outros como serpentes furiosas24”. “Quem não desejou a morte de seu pai?”, pergunta Dostoievski em Os irmãos Karamazov. A paixão desemboca assim na pergunta desesperada: “Onde está o bem?”, ao constante desânimo e desgosto: “Tudo me é igual”. No limite surge a acídia, a morna desesperança que se apodera do homem espiritual, talvez porque este tenha se orgulhado de sua ascese, talvez porque ele quis ver (a luz do Tabor, por exemplo, esquecendo-se que ela irradia de um rosto). A Filocalia enumera, numa lista clássica desde as origens do monaquismo, sete ou oito paixões: a gula, a cupidez, a avareza, a cólera (que engloba a raiva e a inveja), a tristeza (pela morte), a preguiça (como pesandez espiritual), a vanglória e o orgulho. Dentre essas paixões, duas parecem ser as “mães” fecundas das demais: a cupidez, que permanece mais dentro dos limites do corpo, e o orgulho, no espírito. Assim estabelecem-se dois circuitos, que finalmente se identificam. A gula aparenta-se à cupidez, que é uma gula dos corpos, e ambas desembocam na avareza: no primeiro grau para saciar-se mais profundamente substituindo o ser pelo haver; assim vem a tristeza (pois o ter é sempre ilusório), a inveja (o “desejo mimético” analisado por René Girard), a cólera, a violência contra o outro, por exemplo contra aquele que adquiriu primeiro um bem que se quer ter. O orgulho, esta centralidade fechada e possessiva, suscita a vanglória, um desfile de riquezas e de seduções, provoca a cólera e o despeito quando não se
23 Carta a Nicolas.
24 Questões a Thalassius, PG 90,256.
obtém a admiração incondicional dos outros, etc. Na realidade, a cupidez e o orgulho exprimem o mesmo cativeiro fundamental, o enrolamento do mundo ao redor do ego, esta filáucia de que fala Máximo o Confessor para dizer que o homem tende a se tornar seu próprio ídolo25 . Muitos autores da Filocalia analisaram com sutileza o nascimento, o desenvolvimento e o enraizamento de uma paixão26. O “ataque” ou “sugestão” designa a aparição na consciência de uma obsessão em estado germinativo. A “cumplicidade” mostra o intelecto que brinca, depois se enreda e a seguir começa a justificar a paixão nascente. Na fase de “adesão”, chega a vez de a vontade consentir. Assim vêm a “realização” e o “hábito”, gosto e desgosto, fausto e tristeza. Mas a admiração dos “padres népticos” pela grandeza e bondade do homem é tal que eles costumam ver na paixão, claro que com nossa livre e plena cumplicidade, uma espécie de possessão. “Satanás caiu e foi destruído, [mas] nossa inteligência não o faz menos forte e ele se orgulha de nós27.” Nas Homílias macarianas, quando se comenta o relato simbólico da queda no Gênesis, “a serpente enganadora fez sua morada no homem, e é como se este tivesse recebido uma outra alma ao lado da sua própria alma... No homem existe um assassino, ou seja, uma força inimiga, que é invisível e se opõe a ele28.” Realidade ou alucinação, pergunta-se Ivan Karamazov, gaiola de espelhos aonde o homem se multiplica e se desagrega – pois o demônio expulso do possesso geraseno confessa que ele é “legião29” –, perversidade do mal que não é apenas uma tendência da criação na direção do nada de onde ela foi extraída, mas que corresponde a um igual número de perspectivas do homem secretamente aguilhoado pela morte, tomado pela “força inteligente do adversário que age secretamente no seu interior30”. Dialética do interior e do exterior, que seria presunção desembaraçar, pois “somente aqueles que
25 Centúrias sobre o amor III, 4.
26 P. ex., Hesíquio de Bathos, Capítulos sobre a sobriedade e a vigilância, 44-46.
27 Gregório o Sinaíta, 137 sentenças diversas, 70.
28 Homilias espirituais de são Macário XV, 48-49.
29 Marcos V, 9; Lucas VIII, 30. 30 Homilias espirituais de são Macário XV, 48-49.
obtiveram a paz de Cristo e sua luz sabem de onde ela provém31”. Antecipemos: a impassibilidade (apatheia) à qual se chega pela ascese não é insensibilidade, mas liberdade interior, capacidade de conhecer e de amar com toda nossa força de paixão transfigurada pelo “amor louco” de Deus pelo homem. “A impassibilidade é o objetivo da práxis... ela precede e permite o amor, e o amor permite o conhecimento32.”
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