INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA
INTRODUÇÃO À ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA
por Olivier CLEMENT
I PARA SITUAR A FILOCALIA
Esta introdução não tem outro objetivo, aliás modesto, senão o de estabelecer um vocabulário e de permitir sentir a atualidade de um pensamento. Para entender a música secreta da Filocalia, é preciso nos reportar ao belo posfácio de Jacques Touraille, que não apenas foi o grande artesão da sua tradução, como também, sob muitos aspectos, um “homem filocálico”.
A palavra filocalia significa “amor à beleza”, esta beleza divino-humana da qual diz Denis Areopagita “suscitar toda comunhão”. Porém, na época em que a obra foi composta, este termo indicava mais prosaicamente uma antologia ou florilégio. De fato, trata-se de uma vasta coletânea, não de extratos, mas de tratados integralmente transcritos e que constituem a “escola mística da prece interior1 ”. Tratava-se de sugerir a ação e a contemplação com o objetivo de “descobrir “o reino de Deus em si mesmo, o tesouro escondido no campo do coração2 ”, alusão à parábola evangélica que descreve um homem que, tendo encontrado um tesouro no campo, vende tudo o que possui para adquiri-lo.
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1 Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.
2 Ibidem.
A Filocalia foi publicada – em grego – em Veneza em 1782, pois livros cristãos não podiam ser impressos no Império Otomano. Sua redação está ligada a uma clara renovação espiritual que se produzia então no mundo helênico e na Moldávia, e está fundamentada numa retomada de consciência da teologia, da espiritualidade e da vida sacramental ortodoxas. Macário de Corinto, que selecionou os textos, e Nicodemos o Hagiorita3 , que os introduziu, haviam publicado uma obra recomendando a comunhão freqüente (ela se tornara rara tanto no Oriente como no Ocidente) e Nicodemos editava as principais obras dos grandes teólogos de Bizâncio.
O que mais uma vez vem à luz com a Filocalia, é a tradição hesiquiasta4 , que está no coração da espiritualidade monástica original, jamais interrompida no Oriente. Ao que parece, Macário descobriu na biblioteca do mosteiro de Vatopédi, “uma antologia sobre a união do espírito com Deus, recolhida dos escritos dos antigos Padres graças aos cuidados de monges piedosos de antanho; ele encontrou também outros livros sobre a oração de que ele nunca ouvira falar5 ”, sem dúvida porque a língua na qual foram escritos havia envelhecido até se tornar irreconhecível. Pouco conhecida no mundo grego, aonde só seria reeditada em 1893 e depois em 1957, a Filocalia espalhou-se principalmente na Rússia. O estaroste Païssi Velitchkovsky, instalado na Moldávia, traduziu-a para o eslavo e a fez imprimir na Rússia já em 1793. Uma nova edição surgiu em 1822. A Filocalia traduzida para o russo por Teófano o Recluso, e publicada em 1877, foi reimpressa quatro vezes até as vésperas da guerra. Ela penetrou tanto os meios intelectuais como o povo. A “filosofia religiosa” russa foi, por um lado, uma tentativa de conceituar a experiência filocálica. No século XX, na Romênia, aonde a tradição hesiquiasta é muito antiga, o Padre Dumitru Staniloae publicou uma Filocalia ainda mais extensa, com quatro volumes entre 1946 e 1948 e mais seis de 1976 a 1981.
Os textos da Filocalia estão dispostos em ordem cronológica: textos monásticos originais, com predominância do pensamento de Evagro o Pôntico, síntese conclusiva da grande época patrística quando Máximo o Confessor deu o tom, movimento carismático do ano mil a meados do século XII em que um autor pouco conhecido, Pedro Damasceno, está longamente representado (ele sabe unir indicações concretas e profundidade espiritual), síntese do século XIV – um quarto da obra – dominada pela teologia experimental de são Gregório Palamas; enfim, para encerrar, sete tratados breves mais recentes, escritos em linguagem popular.
3 Hagiorita significa “da Montanha Santa”, ou seja, do Monte Athos.
4 Do grego hésychia: paz, silêncio da união com Deus.
5 A. E. Tachiaos, Païssi Velitchkovsky et son école ascétique et philologique, Tessalônica, 1964. O próprio Païssi, quando de sua estada em Athos, anterior à de Macário, disse ter conhecido estas coleções e que começou a traduzi-las para o eslavo. Tratava-se, segundo Tachiaos, dos Cod. Vatop. 650 (séc. XIII) e Cod. Vatop. 262 (séc. XV).
A obra, como sublinha Nicodemos em seu prefácio, é destinada “aos monges e leigos juntos”. Todos são chamados a “se unificar” interiormente unindo-se a Deus e através disto, em Cristo, com todos os homens, segundo a oração sacerdotal citada por Nicodemos: “que todos sejam um, como nós somos um6 .” Os mestres da Filocalia, inquietos com a influência crescente da Aufklärung sobre os gregos cultos, quiseram opor à Enciclopédia francesa das “luzes” uma espécie de enciclopédia da Luz incriada. Porém, como Païssi que levou a obra do mundo grego para os mundos eslavo e romeno, eles trabalharam eficazmente com os métodos da erudição ocidental. Do mesmo modo, em nossa época, o Padre Staniloae contemplou proveitosamente as aquisições científicas do Ocidente, mas ainda tentou criar correspondências, em numerosas notas, com as interrogações e descobertas desta, citando tanto Heidegger como Maurice Blondel.
Ora, e o fato é significativo, é na Europa ocidental da segunda metade do século XX que a Filocalia parece ser mais conhecida e esperada. Surgiram extratos nos anos 50, e no final dos anos 80 e começo dos anos 90, traduções integrais na Inglaterra, Itália e França. Afinal de contas, entre os descendentes deste Aufklãrung que assustou Macário e Nicodemos, a busca de liberdade exige agora uma libertação da morte, e é a mesma inteligência que mergulha mais e mais na interioridade depois de ter explorado o mundo exterior. A Filocalia não é uma obra confessional. Ao apresentar os textos de Gregório Palamas, às vezes furiosamente anti-latinos, Macário e Nicodemos deixaram de lado as passagens polêmicas7 . Com a Filocalia e a tradição hesiquiasta – como é próxima a hésychia da pax beneditina! – a Igreja ortodoxa traz o testemunho da Igreja indivisa em que estão enraizadas todas as confissões cristãs. A Filocalia, de fato, é fundamentalmente cristã e eclesial, revelando todo o alcance da iniciação batismal. Mas ela assume métodos imemoriais, que encontramos da Índia à China: numa perspectiva, é bem verdade, não de fusão, mas de comunhão, em que o indivíduo ocidental, longe de se perder, se realiza ao se tornar uma existência plenamente pessoal. Como sublinharam em nosso século um estaroste Silouane, do monte Athos, um Dumitru Staniloae, um “Monge da Igreja do Oriente8 ”- cuja obra breve e profunda intitulada La prière de Jésus recomendamos –, a eclesialidade da Filocalia engloba toda a humanidade e todo o universo9 .
6 João XVII, 22.
7 Nicodemo também adaptou para o grego diversas obras católicas.
8 Recomendamos a curta mas profunda obra La Prière de Jésus (Chevetogne, Livre de vie no. 122)
9 Nesta introdução tentamos expressar numa linguagem moderna, para homens e mulheres cuja vida espiritual não pode ser exclusivamente monástica, as intenções essenciais da Filocalia. Não hesitamos em pesquisar em toda a tradição patrística e hesiquiasta, inclusive nos textos que Macário e Nicodemos não incluíram em sua coletânea porque haviam sido editados (são Isaac o Sírio, em sua versão grega de 1770), ou porque viriam a ser editados por eles mesmos.
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