A ORAÇÃO DO CORAÇÃO - parte 2

 



2. «Orar sem cessar»

O problema que tem atormentado a espiritualidade oriental se resume nesta interrogação: Como orar sem cessar? Como ser, não somente um homem que participa cada domingo da Eucaristia, mas ser um homem eucarístico, segundo o preceito paulino citado anteriormente? Não somente um homem que santifica o tempo orando segundo um símbolo solar, um símbolo do dia e da noite, nas principais "horas" da jornada, senão um "homem litúrgico" capaz de santificar cada instante.

Os grupos de monges "acématas" se sucediam no coro para que a salmodia não se interrompesse jamais. Isto porém, não constituía uma solução pessoal.

Uma boa resposta é fazer tudo no sentimento da presença de Deus, sob seu olhar, com gratidão para com ele e atenção para com próximo. "Em todo pensamento e ação pela qual a alma rende culto a Deus, ela está com Deus", disse Macário, o Grande. A Oração incessante, segundo São Máximo, o Confessor, "é ter o espírito aplicado em Deus, numa grande reverência e num grande num amor... contar com Deus em todas as nossas ações e em tudo o que nos sucede."

Um dos interlocutores do Peregrino Russo explica-lhe, que a oração interior é a celebração mesma do universo e da vida, o impulso que leva todas as coisas à plenitude e à beleza, e que corresponde ao homem desvelar esse universal gemido do espírito. Tenho escutado o Padre Dimitrius Staniloaé responder à mesma pergunta, que é necessário receber o mundo como um dom de Deus, e que nós em uníssono, restituímos-lhe imprimindo nele o sinal de nosso amor criador.

Tudo isto é verdade, tudo é importante. Porém, se não se quer permanecer nas boas intenções, nas profundas, porém passageiras intuições, é necessário um instrumento que permita pôr tudo isto em prática. Tal instrumento é a "oração de Jesus".

"No Vigésimo Domingo depois da Trindade", escreve o Peregrino, "entrei na Igreja para orar. Lia-se a passagem da Epístola aos Tessalonicenses onde se diz: 'orai sem cessar'. Essas palavras penetraram profundamente em meu espírito, e me perguntei, como é possível orar sem cessar, quando cada um tem que ocupar-se de determinados trabalhos para subsistir." Então se pôs a caminho, começou sua peregrinação.

Todo destino cristão é uma peregrinação para "o lugar da oração" - de onde o Senhor nos espera e para onde nos atrai . Os caminhos seguidos no espaço não fazem mais que expressar, que facilitar, por meio dos encontros e irradiações, as intercessões que encontremos ali este caminho interior. Busca-se ao homem, aos homens, que nos darão as "palavras de vida". que nos despertarão ao que nos é mais interior, tão próximo e, não obstante, tão distante. O Peregrino russo busca incansavelmente, recebe respostas parciais, encontra muitas pessoas que o fazem avançar em si mesmo, até o "coração consciente "mas não recebe uma resposta decisiva até que descobre um "starets", isto é, um "ancião", no sentido espiritual da palavra.

No Oriente cristão - e no Oriente em geral - ama-se a morte, transparente à outra luz. Uma civilização na qual já não se ora é uma civilização que, às vezes, carece de sentido. Marcha-se aos empurrões para a morte, imita-se a juventude, é um espetáculo desgarrante porque - ainda que se oferece uma possibilidade prodigiosa através do último desapego - mesmo assim, não se aproveita. Temos necessidade de anciãos que orem, que sorriem, que amem com amor desinteressado, que se maravilhem; só eles podem mostrar aos jovens que vale a pena viver; que o nada não tem a última palavra. Todo monge no qual a "ascesis" deu fruto, é chamado no Oriente, qualquer que seja sua idade, um "belo Ancião". É belo com a beleza que sobe do coração. As etapas da vida se harmonizam, se sintonizam, poderia-se dizer. E, sobretudo, o original é re-encontrado: branco com uma brancura transfigurada, o "belo ancião" tem olhos de criança.

O Peregrino encontrou um desses anciãos. "Entramos em sua cela e me dirigiu as seguintes palavras: 'A oração de Jesus, interior e constante, é a invocação contínua e ininterrupta do Nome de Jesus, por meio dos lábios, do coração e da inteligência, no sentimento de sua presença em todo lugar e em todo tempo, inclusive durante o sono. Ela é expressada por estas palavras: 'Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim'. Aquele que se habitua a esta invocação recebe um grande consolo e recebe também a necessidade de dize-la sempre. Ao final de algum tempo, já não poderá viver sem ela e, por si mesma, ela brotará nele, não importa onde, não importa quando.

O "Senhor Jesus Cristo", ou "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus" - diz-se sobre a inspiração. O "Tem piedade de mim" ou, as vezes "Tem Piedade de mim, pecador" - é dito sobre a expiração. Isto se faz com abandono, por amor.

Na tradição beneditina antiga empregava-se, da mesma maneira, as palavras de um salmo: "Senhor, vem em minha ajuda, apressa-te em me socorrer". A Igreja antiga utilizou muito, para orar, o "Senhor, tem piedade", "Kyrie Eleison" (o sentido é mais rico que o da piedade; implica também doçura, ternura, misericórdia...)

Hoje mesmo, no ofício monástico e paroquial ortodoxo, recita-se quarenta vezes seguidas o "Kyrie Eleison". Esta última fórmula convém melhor para os iniciantes, os penitentes. É necessária já uma certa familiaridade com a oração para introduzir nela o nome de Jesus. Não existe, porém, regras. A penitência, como veremos, dura até a morte. E o mistério da Cruz e a descida de Cristo aos infernos permite, desde o começo, a audácia do amor. Topo da Página (Índice)


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